É isso mesmo: “Semana praticamente encerrada” é uma newsletter que sai quarta feira, mas nem toda quarta. Nesse primeiro número lanço a primeira parte de “O circo chegou", o relato de uma situação que realmente aconteceu comigo — um tanto modificada por motivos editoriais, amnésia e pelos registros incongruentes que sobraram na nuvem de um iPhone jurássico.
Mas acredite: nessa história estou pecando pela falta e não pelo excesso, o caso tem ainda mais acontecimentos bizarros, infelizmente perdidos na névoa da memória. Além disso, essa newsletter terá duas seções fixas: Arnaldo’s crapbook (meu caderno de rascunhos) e a coluna Bateu / não bateu, onde comento produtos culturais que curti e que não curti pra você que não vive sem a minha opinião.
O circo chegou
Começou numa noite de domingo, em fevereiro de 2013.
Na época eu morava em um apartamento pequeno no último andar do prédio, com uma excelente vista da Baía de Guanabara, mas trabalhava tanto que mal tinha tempo de admirá-la — coisa que podia fazer se virasse um pouco a cabeça para a esquerda. Mas minha cara estava sempre pregada no laptop.
Eu estava obcecado em estabelecer minha reputação como roteirista autônomo em um mercado muito concorrido, e pegava qualquer trabalho mesmo que parecesse impossível cumprir todos os prazos, o que no fim das contas sempre conseguia, porém em prejuízo da minha vida social e da minha saúde. Escrevia de 7 da manhã às 11 da noite mas não pretendia viver essa rotina pra sempre; me programei pra aguentar no máximo um ano até ter certeza de que meu portfólio seria robusto o bastante para falar por mim e me poupar da obrigação de fazer o tal do networking. Nunca aconteceu, mas desde então aprendi a me programar para ter pelo menos um burnout por ano.
Naquele domingo ainda estava nos primeiros dias do meu esforço de guerra, e me mantinha bem concentrado na última tarefa da minha lista quando comecei a ouvir barulhos estranhos vindos do corredor.
Fui até o olho mágico e vi que a porta do vizinho, uns sete metros adiante, estava entreaberta. O sujeito estava entregue a alguma função que não dava para distinguir — ia para lá e para cá constantemente, e eu só conseguia vê-lo quando eventualmente passava pela fresta, ou quando escancarava a porta para mexer nela, como se estivesse fazendo algum conserto. Meu vizinho, que parecia estar sozinho, falava muito e alto, e dava impressão de estar em surto ou drogado com algum estimulante.
Conhecia esse vizinho de poucas interações no elevador, mas sabia quem ele era. Tinha feito parte de uma banda que chegou a alcançar algum sucesso no Rio de Janeiro, bem à moda local: os membros estudavam em uma faculdade particular, e o modesto rumor que causavam no campus ecoava até as páginas dos cadernos de cultura. O trabalho deles era competente e genérico e emulava um determinado ritmo musical popularizado na região nordeste, embora todos os membros fossem nascidos no Rio de Janeiro.
Eu não reconheci o sujeito como membro da banda: foi ele quem se apresentou usando essa credencial, numa daquelas raras interações. Meu vizinho imaginava que eu poderia ter ouvido falar da sua música porque um dia me vira conversado na portaria com uma antiga conhecida da faculdade, e deduziu que tinha outros amigos que costumavam frequentar o mesmo campus. Uma dedução correta, a que não dei muita importância — até alguns meses mais tarde, quando se deu o ocorrido.
A banda havia acabado — ou reduzido sua atividade a alguns shows pontuais, não sabia dizer com certeza — e meu vizinho agora morava com a mãe e um pai convalescente, que naquela noite devia estar passando mais uma de suas frequentes temporadas no hospital. Mas ele era um entusiasta da sua própria música e na semana anterior ao acontecido bateu na minha porta do nada para me emprestar um CD que a banda havia gravado anos antes. Agradeci e devolvi no dia seguinte, sem ouvir — não só porque já conhecia o material como também porque não possuía um aparelho para tocar CDs.
Voltei a olhar várias vezes pelo olho mágico para acompanhar o sujeito cada vez mais agitado, entregue à tal tarefa que não conseguia distinguir, mas que envolvia o manuseio de enormes folhas de papel pardo, aquelas propícias para fazer murais com colagens para trabalhos escolares. Ele falava cada vez mais alto e devia estar incomodando mais gente além de mim.
Cansei de observar aquela movimentação, desisti de trabalhar e lá pela meia noite fui dormir.
Acordei cedo na segunda e fui me preparando para sair, correr alguns quilômetros e voltar para casa, retomando minhas tarefas de roteirista. Preparei o café, enrolei um pouco por preguiça e finalmente abri a porta. Quando olhei para frente, estranhei algo na estreita paisagem do corredor. Me aproximei e vi o que era: meu vizinho tinha produzido uma espécie de mural na entrada do seu apartamento, com fotos e frases espalhadas pela porta. Cheguei mais perto e levei um tempo para entender do que se tratava. E quando entendi, levei um susto.
Pois aquela instalação artística era nada mais nada menos do que um tratado sobre mim. Em uma linguagem críptica, cifrada, demente, os cartazes me faziam uma série de acusações sobre vigiar e conspirar contra ele, meu vizinho, e seus pais idosos. Também havia algo sobre agir em conluio com a tal mulher da portaria e com outro amigo em comum que frequentou a mesma faculdade, e que ele havia encontrado por acaso no hall dos elevadores quando estava indo me fazer uma visita. Entre frases difíceis de compreender e delírios mal formulados, uma afirmação bem clara: eu teria mudado para o apartamento em frente com o único propósito de atormentá-lo.
CONTINUA
Arnaldo's crapbook
Meu caderninho de rascunho
Nessa seção falo de um filme (ou série, ou livro etc) que me caiu bem e de outro filme (ou série, ou livro etc) que não bateu. Nem sempre vou tratar dos últimos lançamentos, principalmente no caso das coisas de que não gosto — porque o desagrado, assim como o Bolsonaro, precisa ser devidamente processado.
Dois filmes em um
Bateu: “American Fiction”, 2023
Cord Jefferson, diretor e roteirista de “American Fiction”, gosta de contar a história do escritor Boris Vian, que detestou a adaptação cinematográfica do seu livro “Cuspirei no seu túmulo” a ponto de ter um acesso de cólera no cinema e morrer — isso para sublinhar que sua ambição principal ao filmar o romance “Erasure”, de Percival Everett, era não matar o autor de cólera no cinema. Percival segue vivo, então aparentemente esse primeiro objetivo foi alcançado.
“American fiction”, fruto desse esforço, é uma pequena joia com dois filmes em um. Na primeira camada, temos a história de Thelonious 'Monk' Ellison, um romancista afroamericano que — de brincadeira e sob um pseudônimo — escreve um livro cheio de clichês depreciativos sobre a experiência da população negra na América. O romance acaba fazendo sucesso com o público majoritariamente caucasiano que adora consumir esse tipo de conteúdo — fato que deixa Monk furioso, já que seus ensaios eruditos mal conseguem encontrar um editor interessado.
Na outro filme dentro de “American Fiction” acompanhamos a rotina da família de classe média do escritor, que vai precisar lidar com a morte de uma irmã querida, com a doença degenerativa da mãe e com a hostilidade do irmão, tramas que servem justamente para ilustrar como a vivência do negro na América não se limita a miséria, gravidez na adolescência e mortes relacionadas ao tráfico de drogas que permeiam seu livro apócrifo.
E o filme faz esse contraponto com muito humor, com destaque para as cenas onde Monk faz parte de um júri para escolher o melhor romance do ano e tenta, junto com a outra escritora negra da banca, evitar que sua piada em forma de publicação ganhe o prêmio — logo sendo desconsiderados porque os outros jurados, todos brancos, afirmam categoricamente que vozes negras precisam ser ouvidas.
Não adianta chorar pelo átomo fissurado
Não bateu: “Oppenheimer”, 2023
Sempre me espantou o fato do Christopher Nolan ter haters porque nunca reconheci na obra dele qualquer traço de estilo que eu pudesse aprovar ou desaprovar, quanto mais odiar. No máximo consegui reparar no seu gosto por histórias ambientadas em realidades alternativas com regras muito específicas que precisam ser explicadas em alguma parte do filme — mas como “Oppenheimer” conta uma trama da vida real imaginei que a gente ia ser poupado dessas cenas estilo manual do usuário.
Só que estava enganado: até momentos com atividades corriqueiras trazem diálogos expositivos sobre personagens e acontecimentos históricos; impressionante como o roteiro não desperdiça nem um “passa o sal” sem meter uma trivia no meio. Ok, diálogo expositivo é um recurso muitas vezes necessário, mas o ideal é disfarça-lo com o mínimo de coloquialismo, como quando você comenta o noticiário com um colega de trabalho e não como em “Oppenheimer”, onde as manchetes de jornal parecem ser a única fonte de interesse dos personagens e as falas são declamadas como se eles estivessem num programa de debate da globonews.
O filme já começa errado na epígrafe que compara as atribulações de Oppenheimer e Prometeu, já que por roubar o fogo dos deuses o titã foi condenado a ter o fígado eternamente bicado por uma águia enquanto o suplício do Oppenheimer por ser um socialista hesitante foi ser julgado e perder uma espécie de carteirinha VIP do governo americano.
Logo em seguida, para enfatizar que o cara tinha uma tremenda consciência culpada apesar do seu currículo de supervilão, entram de dez em dez minutos umas cenas de pesadelo em CGI mostrando umas fissões de átomo ou coisa assim que me lembraram as vinhetas de passagem de cena daquele sitcom Big Bang Theory. E o roteiro não se esforça mais do que isso para construir esse arrependimento, o que faz com que as cenas finais com closes da cara angustiada do Cillian Murphy lembrem muito aqueles atacantes que não comemoram um gol humilhante para não humilhar a torcida adversária. Tarde demais, Oppie.
Oppenheimer tao chato quanto Napoleão. 👆
Morrendo pra tentar saber qual é essa banda! Mais dicas, please!