Tecnicamente vivo
O nome dessa newsletter — Semana praticamente encerrada, se você entrou aqui de olhos fechados e com a força do pensamento — me lembra uma fala do Paulo Francis no meio dos anos noventa, quando ele se declarou tecnicamente morto. O escritor se sentia deslocado naqueles tempos de música eletrônica, blockbusters e literatura de autoajuda: "meu reino não é desse mundo”, dizia ele parafraseando o barbudo da Judéia. O cara decretava que sua vida estava encerrada antes do tempo, assim como faço aqui com a semana, toda semana.
Francis ainda viveu alguns poucos anos carregando esse sentimento de inadequação justificado pela dieta de jazz, nouvelle vague e existencialismo a que se submeteu nos seus anos de formação. Na época imaginei se iria envelhecer dessa forma, pedindo a conta cedo por me sentir completamente fora de sintonia com os tempos que estavam por vir. E qual é a resposta? Ainda não. Vocês vão ter que me engolir.
Portanto estou aqui pedindo humildemente — porém lustrando meu revólver — para que vocês assinem a versão paga dessa newsletter (10 pilas por mês, 100 paus por ano) para que eu tenha forças para continuar tecnicamente vivo. Ah, e tem o meu livro.
Neste número 13 falo de um velho ritual masculino para comentar o imbróglio Silvio Almeida; tenho várias coisas boas para falar do filme “Rebel ridge” e nada de ruim para falar sobre nada — sim, na seção "Não bateu” discorro sobre a falta de assunto. E mais: cartuns, duas mãos e o ressentimento do mundo.
A cotoveladinha
Peço licença para falar só com meus colegas homens aqui: vocês estão familiarizados com o ritual da cotoveladinha? Não sei se essa é uma experiência universal, mas comigo costumava acontecer muitas vezes — falo da mania de outros homens chamarem sua atenção para a passagem de uma mulher bonita, muitas vezes acompanhada de uma leve cotovelada cúmplice.
Essa é uma prática misteriosa para mim. Nunca entendi a necessidade de registrar o fato de que uma mulher bonita é de fato bonita, dessa solidariedade compulsória na constatação de que existem mulheres bonitas, dessa enumeração das mulheres bonitas que circulam por aí. Sempre entendi esse gesto como uma espécie de sinal maçônico dos heteros, denotando algo como “essa aí, hein? Eu faria e tenho certeza que você também”.
Sendo tímido — uma palavra mais simpática para as fobias sociais sem diagnóstico que me assombram desde pequeno — e inseguro, não poderia concordar menos com essa presunção. Demorei um tempo para ter coragem de falar com mulheres e sempre que consegui trocar palavras com uma quase nunca pude identificar se havia algum interesse na minha pessoa. Mais do que sinas de linguagem corporal e insinuações na fala, sempre precisei de uma confirmação carimbada em três vias. Eu nunca teria a empáfia de concordar que faria alguém sem uma mínima investigação para me assegurar da vontade recíproca desse alguém em ser feito — não por alguma convicção moral, mas por mera disposição de espírito.
A cotoveladinha pra mim era uma cerimônia indesejada, como ter que matar alguém para entrar para a máfia — sem que eu nunca tivesse manifestado qualquer interesse em entrar para a máfia. A pressão social daquela interação forçada me lembrava que ser homem não é apenas uma construção íntima, mas principalmente uma performance. E mesmo essa noção não me impediu de desenvolver pensamentos machistas que faço esforços para reprimir mas que ainda habitam os pântanos da minha alma.
Lembrei da cotoveladinha quando vi vários caras inventando teorias da conspiração envolvendo ONGs estrangeiras, bilionários malignos e sabotagens ao governo para defender o ex-ministro Silvio Almeida das acusações que foram se empilhando desde que a história, bastante cozinhada nos bastidores, começou a vazar para a imprensa. Como se a erudição e o estofo intelectual do homem fornecessem um escudo impenetrável para o grande pacto silencioso que ensina e normaliza o assédio, a abordagem de quem acha que tem propriedade sobre seus objetos de desejo — e que sua queda só pudesse ser fruto de uma trama sórdida de inimigos políticos.
E como se suas convicções progressistas surtissem o mesmo efeito de blindagem. Por isso detesto a expressão “não falha nunca” que surge toda vez que alguém é flagrado praticando um crime que o pessoal acha que é de uso exclusivo da turma reacionária. Às vezes falha sim, como no caso do intelectual que decepcionou tanta gente que tinha sua trajetória como exemplo.
O homem de esquerda, por repetir demais e introjetar a noção de que está do lado certo da História, às vezes vai preferir acreditar em um complô mundial do que no fato de que um homem, ainda mais um correligionário, foi machista. A cotoveladinha não tem ideologia.
Arnaldo's crapbook
Meu caderninho de rascunho
Nessa seção falo de um filme (ou série, ou livro etc) que caiu bem e de outro filme (ou série, ou livro etc) que não bateu. Nem sempre vou tratar dos últimos lançamentos, principalmente no caso das coisas de que não gosto — porque o desagrado, assim como o Bolsonaro, precisa ser devidamente processado.
Vietnã particular
Bateu: “Rebel Ridge” (2024)
Na distopia de conteúdo em que vivemos, onde um estúdio pode fazer mais dinheiro jogando fora um filme do que soltando na praça, as novas produções acabam ganhando lançamentos muito tímidos, ou têm sua divulgação tão dispersa por tantas mídias alternativas que aquela notificação avisando que tal obra já está disponível acaba se perdendo no oceano da hiperinformação.
As novidades estão estreando tão sem pompa que se não fosse uma menção en passant num artigo publicado em uma newsletter onde fui parar por pura inércia de internauta não ia saber desse novo filme do competente diretor Jeremy Saulnier (de “Ruína azul” e “Sala verde”): “Rebel ridge” — tá assim mesmo na Netflix, o pessoal não se deu nem ao trabalho de arrumar um nome em português. Mas tudo bem: Rebel ridge é um lugar, não faria muito sentido traduzir pra “Cume do rebelde”.
A trama: Terry (Aaron Pierre) é um fuzileiro naval aposentado transportando a fiança de seu primo, que precisa ser libertado antes de ser transferido para uma prisão estadual onde está jurado de morte, mas é interceptado por dois policiais que confiscam o dinheiro. Terry tenta recuperar o valor por meios legais, mas esbarra na burocracia e em autoridades que parecem determinadas a atrasar o reencontro do soldado com a sua grana. As coisas escalam e ele (adivinha) vai ter que apelar para a violência física — no caso literalmente, ele é instrutor de jiu-jitsu e se recusa a usar armas contra os funcionários de uma delegacia que guardam um arsenal de guerra.
Fiquei particularmente puto com uma resenha no imdb onde o usuário reclamava que estava esperando algo inspirado em “Rambo”, que é exatamente a vibe que o trailer passa — mas além dessa não ser evidentemente a intenção dos realizadores (o filme tem cenas de ação à conta gotas e não se propõe a mostrar uma contagem de corpos) aqui a premissa é muito mais justificada.
Sempre estranhei no roteiro de “Rambo” a implicância que os policiais de uma cidadezinha americana do interior demostram com um veterano da guerra do Vietnã — parece que o livro explica melhor e tem a ver com o fato de que o personagem do Sylvester Stallone usa cabelo comprido. Mas nesse “Rebel ridge” Terry é negro — seu Vietnã é todo o dia, e muito do que acontece com ele é sobre sua cor e a sua recusa em submeter ao preconceito de seus algozes. Cada injustiça sofrida justifica cada decisão arriscada que toma, e a vontade de torcer por seu personagem só aumenta à medida em que o filme se aproxima do desfecho.
Altamente satisfatório no quesito policial branco racista se fudendo.
Atenuantes
Não bateu: nada
Quando a gente trabalha no setor audiovisual e aprende uma coisa ou outra sobre a profissão temos muito mais pudor para criticar certas produções porque acabamos avaliando detalhes além da trama e intenção artística. Às vezes nos perdemos em uma cena de ação não muito bem executada só porque ficamos admirando a direção de cena dos figurantes, ou nos pegamos gostando de um filme ruim porque percebemos que o diretor de fotografia fez milagre com um equipamento precário.
É claro que essas coisas podem ser consideradas elementos atenuantes — mas também guardam um aspecto agravante, principalmente quando a gente pensa em quanto é caro fazer um filme ou série e no quanto de esforço (e politicagem) se gasta para levar um projeto da página em branco até a execução. Perder esse tempo para no fim obter um resultado insatisfatório é triste; se tem uma coisa que dá gastura em brasileiro é ver trabalho duro sendo desperdiçado.
Aliás já elaborei esse paradoxo em uma cena da minha série Overdose (MTV, 2013):
Que pra mim é ao mesmo tempo uma crítica à galera que chora pitangas e um mantra para continuar perseverando nesse metiê tão cheio de vagas arrombadas e puxadas de tapete. Ninguém está me obrigando, repito pra mim mesmo enquanto encaro mais uma folha em branco no Final Draft e uma lista de tarefas no bloco de notas organizada fora da ordem de prioridade porque a inspiração não respeita as nossas necessidades pecuniárias.
Toda essa enrolação é só para dizer que essa semana não consegui assistir nada que valesse a pena falar mal nessa seção — ou até assisti, mas nada tão execrável que não fosse afetada pelo efeito suavizante da empatia corporativista que mencionei no início desse texto. Nos próximos números prometo me embrenhar mais nos menus dos streamings e a até nas searas dos sites de compartilhamento clandestino atrás de obras que pareçam promissoras no quesito ruindade.
Até lá fique com o meu sentimento de piedade pelo nosso setor audiovisual, ele anda precisando.
Um filme que não bateu pra mim essa semana foi "Tipos de Gentileza"..diferente do filme anterior dele (Yorgos) que já nasceu um clássico.
esse texto me deu motivação pra trabalhar e ganhar dinheiro pra assinar a versão paga (e nao foi só pela parte que me identifiquei com a fobia social e a dificuldade de acreditar no interesse de uma pessoa