Cadeira cativa
A cadeirada que o Datena deu no Pablo Marçal pode ter decretado o fim da fase burocrática do fim do mundo — aquela em que a gente precisa desviar dos efeitos colaterais do apocalipse no caminho para o trabalho e para nossas planilhas excel — e começado a era do fim do mundo doideira, com violência gratuita, canibalismo e depredação do patrimônio público.
A gente passou a vida assistindo distopias como Laranja Mecânica, Mad Max, Rollerball, Death Race 2000 e Fuga de Nova York achando essa perspectiva de um futuro selvagem assustadora — mas depois de sermos apresentados ao conceito de armageddon em banho-maria qualquer alternativa parece lucro. Acho que a gente tem mais chance de sobreviver no capitalismo tardio armado com uma cadeira do que com o nosso currículo.
Falando nisso, lembro que se você gosta do que escrevo e rabisco você pode assinar essa newsletter por 10 reais mensais ou 100 anuais e fazer parte dessa rede de apoio que atende uma pessoa, eu mesmo. Outro jeito é comprando o meu livro. Ninguém solta a minha mão.
Nesse número falo sobre o pessoal que reclama de Machado de Assis enquanto leitura obrigatória, elogio a série “Slow horses” e detono “Armadilha” do M. Night Shyamalan. Além disso, cartuns. And that's pretty much it.
Brócolis
Meus pais eram muito econômicos. Nunca fizeram uma viagem internacional juntos — a única quem fez foi meu pai, para o Peru, e a trabalho. Os paletós dele tinham aquelas golas pontudas dos anos setenta, que ainda usava na década seguinte em plena moda da ombreira. Os dois faziam o registro do dinheiro que entrava e das despesas numa agenda de 1976 — com letras tão minúsculas que quando meu pai morreu em um acidente de carro em 1987 as anotações ainda não chegavam a um quarto daquele livro-caixa improvisado. Minha mãe continuou o trabalho — e quando saí de casa, no final dos anos noventa, a agenda ainda tinha bastante espaço.
Aloisio Branco era jornalista, tinha o cargo de secretário de redação do Globo, função que hoje deve ser exercida por um aplicativo que você baixa de graça na App Store, e minha mãe Dulce era dona de casa — portanto juntar recursos não era uma tarefa das mais fáceis, daí a tremenda disciplina financeira dos dois.
Toda essa introdução é meio que um pedido de desculpas para tentar preservar meu crédito de rua: boa parte desse dinheiro economizado foi gasto para inscrever os três filhos no Colégio Santo Inácio, um dos mais rigorosos e caros do Rio de Janeiro. Tirando o único bolsista da minha série eu era o aluno mais pobre no meio de um bando de filhos de médicos, ministros e de banqueiros. Mas tranquilo, isso não deixou maiores traumas na gente além de sermos as únicas crianças que não viajavam para a Disney e nem ganhavam boneco de Guerra nas estrelas — naquela época não havia os genéricos, só importados.
E com toda esses privilegiados ao meu redor recebendo ensino de excelência, lembro do choque que foi para minha mãe descobrir que a matéria que mais gerava protestos dos pais dos outros alunos era interpretação de texto — em toda reunião com o corpo docente tinha alguém contestando a nota baixa do filho nas provas de literatura. Ali estavam os futuros donos do país, e seus progenitores estavam empenhados em brigar pelo seu direito de serem analfabetos funcionais.
Lembrei disso recentemente, quando rolou uma polêmica sobre a adoção dos livros de Machado de Assis no currículo escolar — sobre como não é possível estimular a leitura nos jovens com um autor de estilo tão rebuscado.
Esse movimento parece relegar a literatura a um estudo de segunda classe, como se houvesse a opção de ministrar uma versão mais acessível da matéria só para fazer a galera que não gosta aprender a gostar. Eu não tinha essa moleza com as outras disciplinas que eu odiava, como matemática e química.
Literatura não é brócolis, algo que você precisa ensinar seu filho inapetente a consumir porque é bom para a saúde. E interpretação de texto não é um luxo, é uma necessidade básica que, como várias outras, não está sendo suprida no Brasil.
Se eu era obrigado a aprender trigonometria meus colegas bem que podiam fazer o esforço de ir ao dicionário de vez em quando.
Arnaldo's crapbook
Meu caderninho de rascunho
Nessa seção falo de um filme (ou série, ou livro etc) que caiu bem e de outro filme (ou série, ou livro etc) que não bateu. Nem sempre vou tratar dos últimos lançamentos, principalmente no caso das coisas de que não gosto — porque o desagrado, assim como o Bolsonaro, precisa ser devidamente processado.
Somos todos pangarés
Bateu: “Slow horses” (2022, primeira temporada)
Começar uma série que já tem várias temporadas é um dos maiores compromissos que um homem moderno pode assumir. Enfrentar uma tarefa que exige mais tempo do que a gente costuma ter disponível arriscando uma decepção lá pelo quarto episódio é para os obstinados — ainda mais porque a gente sabe que existe aquela categoria de seriado que só fica bom justamente a partir de algum ponto no meio dessa primeira fase da relação.
Daí o motivo pelo qual demorei tanto tempo pra começar “Slow horses”: fui deixando o tempo passar e do nada os caras meteram quatro seasons sem dó, cada uma delas acrescentando mais horas de teledramaturgia na nossa lista de séries pendentes nesses tempos de burn out no trabalho e entretenimento cronometrado.
Mas com “Slow horses” já no primeiro capítulo você deixa de se preocupar com a longa duração da experiência e aproveita a viagem. Aposto que o Emmy concedido ao criador Will Smith (relaxa, é um homônimo inglês) vai trazer mais adeptos retardatários como eu.
De cara somos apresentados a uma unidade apelidada de “Slow horses” (eu metia logo “Pangarés” na tradução) para onde vão todos os agentes do MI5 caídos em desgraça, em um purgatório onde são obrigados a fazer o possível para não atrapalhar os espiões da primeira divisão. River Cartwright (Jack Lowden) acaba sendo mandado para o escritório dos pangarés — que tem outro apelido desabonador, “Slough house” ou “pântano” — depois de falhar em uma ação simulada de atentado terrorista.
Logo Cartwright vai descobrir com seu novo chefe Jackson Lamb (Gary Oldman, abusivo e espetacular) que sua queda é só uma das etapas de um plano para implicar a extrema direita no sequestro de um jovem comediante paquistanês e deixar o MI5 bem na fita com o tio dele, um general. Quando tudo dá errado a missão principal passa a ser culpar os Slow Horses — mas isso Lamb não vai permitir, muito mais porque detesta perder e não porque tem alguma estima por seus comandados.
Além da história bem azeitada e dos diálogos cheios de mau humor inglês, é fácil se identificar com o time de perdedores: muitos de nós já se sentiram perseguidos e desprezados por patrões ainda mais desqualificados do que a gente. Somos todos pangarés.
Manobra diversionista
Não bateu: “Trap” (2024)
Quando vi o trailer de “Trap” do diretor M. Night Shyamalan, onde um assassino leva a filha no show da diva pop número um do mundo sem saber que foi atraído para uma armadilha por uma tropa do SWAT, pensei imediatamente: pode ser uma boa premissa, mas depende.
Como a polícia soube que ele estaria no estádio? Por que a diva pop número um do mundo arriscaria seu público e sua carreira para ajudar uma instituição de orçamento gigante e que deveria ter um plano B menos complicado? É uma boa ideia emboscar um sujeito acompanhado de uma criança? É preciso ter a disposição de um psicopata para levar sua filha no show da Diva Pop número um do mundo? Tá, essa última pergunta é zoação, é claro que a resposta é sim.
“Trap” tem uma história que parece a brincadeira de uma criança manipulando bonecos e inventando soluções mágicas na hora. Os primeiros minutos depois que o vilão Cooper (Josh Hartnett) percebe que está cercado até são interessantes, com ele procurando rotas de fuga através de expedientes espertos, mas a coisa degringola e de repente o cara parece esbarrar milagrosamente com os funcionários e os policiais mais burros à disposição, conseguindo avançar bastante em sua escapada através da força da incompetência alheia. Todas as perguntas que fiz no segundo parágrafo ganham como a resposta a solução mais preguiçosa que um roteirista posto diante dos desafios da trama poderia conceber.
Depois de um certo ponto, do nada, por pura necessidade do roteiro em conduzir o filme para algum tipo de impasse, é Cooper quem começa a demonstrar graves sinais de inaptidão, facilitando o trabalho dos seus caçadores para empatar o jogo e dar alguma chance para a pobre da SWAT — quando aí novamente é a força policial que começa a dar mole novamente. O filme me lembrou um pouco a atuação das defesas de Vasco e Flamengo no jogo desse fim de semana.
Shyamalan é refém do sucesso de seus filmes fundamentados demais em reviravoltas mostrando que aquilo que assistimos até ali era apenas uma manobra diversionista, uma mentira para ocultar a surpresa final — o que é sempre um lance arriscado se matamos a charada antes do tempo. Aqui ele erra a direção já no início e nunca mais consegue a nossa cumplicidade para seus joguinhos narrativos.
Não sei se para insinuar que Shyamalan não levou esse seu último trabalho à sério, a cena de pós-créditos é uma piada protagonizada pelo personagem bonachão que cumpre o papel de alívio cômico desse filme que definitivamente não precisa de um — “Armadilha” não provoca nenhuma tensão que seja preciso aliviar.
pangarés não bateu por aqui… second chance?!
Me parece que o shimala queria mais promover o trabalho da filha como cantora nesse filme, porque ela nem boa atriz é (visivelmente), e a história ficou super mal costurada.