Hoje é quarta-feira e com ela chega a segunda edição de Semana praticamente encerrada, a newsletter que decreta o fim da jornada de trabalho precocemente.
Aproveito pra agradecer a quem assinou, principalmente para os oito abnegados que optaram pela opção paga sem eu nem pedir. Bom, pois a partir de agora eu vou pedir, já que eu trabalho em um setor — o audiovisual — que está enfrentando um meltdown global, e cada centavo que pingar faz diferença.
Nem vou vir com o papinho de “custa só dez reais, menos de uma Heineken por mês” até porque a gente sabe que talvez seja essa Heineken que dará a coragem necessária para falar com a pessoa especial que nos amará para sempre — e porque é com essa mentalidade que a gente acaba devendo pro agiota. Mas que eu vou medir o respeito que vocês tem pelo meu trabalho por essa métrica, ah, isso eu vou.
Nesse número temos a segunda parte do conto de terror imobiliário “O circo chegou”, uma história que realmente aconteceu comigo, mais cartuns e a seção '“Bateu / não bateu”, onde procuro sarna pra me coçar com os haters de “The killer” (dirigido por David Fincher, 2023) e com os fãs de “The bear” (escrita por Christopher Storer, 2023 também).
Aproveite a leitura enquanto Jesus não volta.
O CIRCO CHEGOU - PARTE 2
Com pressa e medo de ser flagrado, tirei várias fotos do painel. Reparei que nele meu vizinho se referia algumas vezes a algo ou alguém como “014”, e levei um tempo pra fazer a ligação — o cara estava falando de uma tira que eu publicava no jornal O Globo, uma paródia do 007 chamado Agente Zerotreze.
Então ele conhecia meu trabalho, assim como eu conhecia o dele.
Desci e aproveitei pra pedir para o porteiro mais detalhes sobre a fascinante personalidade do meu vizinho. Só ouvi evasivas sobre seu jeito de ser excêntrico, dado a rompantes histéricos geralmente detonados por inconveniências minúsculas. Falei sobre o mural e as mensagens, mas não consegui uma reação mais expressiva do que um “que coisa, né”.
Quando voltei da corrida, a teoria da conspiração rabiscada de canetinha ainda estava no mesmo lugar. Tomei banho e fui tentar descobrir mais alguma coisa sobre aquela manifestação artística insólita com moradores que tivessem algum grau de intimidade com aquele aprendiz de Basquiat.
A síndica do prédio era uma dessas pessoas, embora não fosse moradora — era terceirizada e só aparecia de vez em quando para ouvir reclamações e receber a contribuição mensal. Peguei seu número com o porteiro e liguei para contar o ocorrido. Ela não pareceu surpresa; na verdade aparentava estar bem aborrecida com a minha queixa, impressão que mais tarde se confirmou: tinha uma antiga amizade com a mãe do meu vizinho, que era proprietária, e como eu não passava de um reles inquilino, aparentemente tinha menos direito a me sentir incomodado do que os moradores dessa casta superior.
Também liguei para aquele amigo cujo nome estava registrado algumas vezes no mural e que — involuntariamente — havia ajudado a disparar o surto. Foi quando finalmente entendi a origem daquela implicância. Meu algoz era um caso clássico de estudante profissional da universidade onde estudaram juntos, um daqueles sujeitos que tratam a faculdade com um útero difícil de abandonar, e que continuou a frequentar o campus vários anos depois da formatura. A explicação do trauma era simples: depois de perturbar várias gerações de estudantes vagando pelos jardins da instituição de ensino, foi expulso para sempre quando foi pego espiando o banheiro das mulheres.
Passei a segunda-feira trabalhando. Nenhum barulho no corredor, nenhum sinal do meu acusador, a não ser esse: de noite, quando conferi mais uma vez no olho mágico, percebi que a obra de arte inspirada por mim já não estava mais lá.
O porteiro ou a síndica deviam ter alertado meu vizinho para o fato de que qualquer intervenção na decoração do prédio deve ser discutida em uma reunião do condomínio, e o autor acabou com a exposição, talvez sob protestos. Foi aí que percebi um pedaço de papel no chão, que ele havia passado por debaixo da minha porta.
Achei redundante; algumas dessas acusações já haviam sido registradas no mural.
O espanto com aquela situação continuava tão grande que achei por bem dividir a história com a diarista, que veio na terça-feira. Sua reação foi ainda mais indiferente do que a do porteiro e da síndica. Na verdade, foi pior: por ser amiga da diarista que trabalhava para a mãe do meu vizinho, estava a par dos sentimentos do cara por mim.
“Ele te odeia. Já falou que gostaria de te esfaquear algumas vezes”, disse, achando muito graça.
Descobri que esse desejo mórbido era motivo de piada e eu parecia ser o único no andar que ainda não estava a par daquele assunto hilário. Acho que sua figura atarracada e despenteada — seu penteado lembrava o cabelo revolto do apresentador Guga Chacra — acrescentava um aspecto cômico ao seu ódio e contribuía para que ele não tivesse muito crédito como assassino em potencial.
Talvez eu também estivesse um pouco contaminado por essa ideia porque não tomei maiores precauções para me proteger além dessa: toda vez que saía do apartamento até o elevador, me esgueirava com as costas contra as paredes, como naquelas cenas de filme de ação onde o herói, empunhando uma pistola, esquadrinha o perímetro. Mas sem a pistola, infelizmente.
Na quarta-feira de manhã o porteiro me chamou para contar sobre uma conversa que tivera com o cara, que alegou que nos conhecíamos desde a infância — e que aquela era na verdade uma rixa antiga. Na volta do almoço para casa, mais um presente passado debaixo da porta: um objeto quebrado que não identifiquei, já que dele só sobraram algumas lascas de madeira.
De tarde, meu vizinho fez algum barulho enquanto esperava pelo elevador, e eu tive a excelente ideia de ir até o olho mágico para conferir sei lá o que. Foi quando meu cachorro Batman entrou no caminho, provocando um esbarrão — tive que me apoiar ruidosamente na entrada do apartamento, e o bichinho começou a latir. Foi então que o camarada gritou através da porta:
“Deixa seu cachorro fora disso!”
Deixei mesmo: assim que ouvi o barulho do elevador descendo entupi todas as frestas com panos de chão, temendo que ele tentasse envenenar o Batman. Esse episódio também provocou minha primeira conversa com a mãe do sujeito. Consternada, bateu na minha porta pedindo desculpas, dizendo não saber mais o que fazer a respeito do temperamento do filho, como se ele fosse uma criança hiperativa e não um marmanjo de quase cinquenta anos. Tentando me acalmar, me assustou ainda mais sugerindo que eu ficasse uns dias fora, para o meu bem.
Pensando no volume de trabalho que teria que enfrentar na próxima semana, achei uma boa ideia acatar a sugestão. Fiquei esse tempo na casa de um amigo, onde passei a trocar mensagens com um conhecido da família que servia de tutor para o meu vizinho. Segundo ele, a situação parecia ter se acalmado.
Voltei para o meu apartamento numa manhã de domingo. De tarde comecei a sentir um cheiro horrível vindo do corredor, e fui conferir.
O cara tinha esfregado fezes humanas — dele, eu imagino — na minha porta.
CONTINUA
Arnaldo's crapbook
Meu caderninho de rascunho
Nessa seção falo de um filme (ou série, ou livro etc) que me caiu bem e de outro filme (ou série, ou livro etc) que não bateu. Nem sempre vou tratar dos últimos lançamentos, principalmente no caso das coisas de que não gosto — porque o desagrado, assim como o Bolsonaro, precisa ser devidamente processado.
Business as usual
Bateu: “O assassino”, 2023
Na primeira cena de “The Killer” o matador de aluguel sem nome interpretado por Michael Fassbender diz, ou melhor, pensa em voice over: “se você não aguenta tédio esse trabalho não é pra você” — e em seguida começa uma tocaia que dura exasperantes vinte minutos. Se isso não é um comentário velado sobre a rotina de um set de gravação, vale como um “estejam avisados” sobre o estado de espírito geral do filme.
Em seguida Fassbender aproveita o tempo de espera para declamar seu mantra profissional, que tem mandamentos como “preveja, não improvise” ou “enfrente apenas a batalha pela qual você foi pago” — e também para lembrar que seu trabalho eticamente questionável não faz muita diferença em um mundo de valores morais falidos e ainda por cima superpopulado.
A trama é um fiapo: a tocaia da primeira cena dá errado, e a firma que contratou seus serviços resolve promover uma queima de arquivo que acaba com a namorada do protagonista numa cama de hospital. Nosso anti-herói então resolve se vingar da firma, dos assassinos contratados e do cliente que contratou a firma. Uma terça-feira normal no capitalismo, que aliás é o vilão oculto do filme.
Mas o diretor David Fincher é o Romário do cinema, capaz de criar beleza mesmo limitado pelo espaço da pequena área. Ele contorna os furos do roteiro — como um cara tão precavido tem um endereço tão facilmente rastreável? — e nos conduz pela jornada de Fassbender atrás de seus inimigos, que acompanhamos com grande interesse apesar de seu personagem ser, por motivos de camuflagem também explicados em voice over, completamente desprovido de carisma — isso sem falar em empatia, principalmente diante de suas vítimas.
“The Killer” não traz só divagações sobre o job de capanga; tem cenas de ação também, todas muito bem coreografadas, como uma fuga alucinante em uma scooter e uma luta corporal que levanta a questão: por que nessas ocasiões aparece sempre um atiçador de lareira pra ser usado como arma improvisada? E o que uma lareira está fazendo em uma casa na Flórida?
Bem, detalhes. E o embate principal é travado no gogó — com a Tilda Swinton. 10/10.
Amigo urso, saudações polares
Não bateu: “The bear”, segunda temporada (2023)
CALMA. Eu gosto da série e da segunda temporada, esse vai ser um “não bateu” bem pontual — aliás, ainda estou no segundo número da newsletter e já sinto dificuldade em arrumar material pra esse segmento. Quanto mais velho, mais a gente fica consciente do valor do tempo — e assim vamos perdendo o pudor de largar mão de qualquer filme, livro ou série no instante em que o motor começa a ratear. Espero que o fato de ter visto todos os episódios sirva como prova de que não sou um hater.
Faço essa ressalva porque hoje em dia a galera costuma defender seus seriados favoritos com a disposição assassina de um produtor associado, e “The bear” tem um fandom particularmente apaixonado. Pudera, a cada cinco minutos a série quebra a regra de ouro que o Larry David estabeleceu na sala de roteiro de “Seinfeld” — “sem abracinho, sem aprendizado” — oferecendo uma dose generosa das duas coisas. Mas a gente deixa passar porque geralmente são entremeadas por porções igualmente caprichadas de cenas onde os personagens chegam à beira de um AVC de tanto estresse e ansiedade. Nesse quesito, o sexto episódio (“Peixes”) é para aplaudir de pé e medicado.
“The bear” tem uma trama simples e objetivos claros nas suas temporadas — o staff do restaurante precisa equilibrar as contas na primeira, subir de nível na segunda — e se garante na beleza da fotografia, no equilíbrio da alternância entre takes longos nos momentos que revelam intimidade e cortes ultra rápidos nas cenas de tensão dramática, mas principalmente no carisma dos seus ótimos personagens.
Infelizmente os autores têm plena consciência desse charme e dessa vez encheram a trama com interações que servem de piscadela para o público, numas de: “eles não são adoráveis”? Um exemplo disso é o interesse romântico que inventaram para o protagonista Carmy Berzatto; são agoniantes as cenas em que ele e a namorada Claire se derretem em olhares demorados e conversas pra boi dormir, que dizem pouco sobre porque se apaixonaram — tirando o fato de que são interpretados por atores gostosos que ficam bem em hiperclose.
Mais: os diálogos calorosos entre Carmy e a sous chef Sidney têm tanta cara de autoajuda que o fato dela estar lendo um livro do técnico de basquete Mike Krzyzewski sobre como liderar equipes vencedoras parece ter sido plantado para justificar a contaminação da sua prosa por tantas palavras de incentivo.
E olha que eu passo pano pra outros descuidos, como a trama do primo Richie, que tem um arco de redenção que dura exatamente uma semana — o tempo em que ele estagia num restaurante chique no episódio “Garfos”. Embora já tivesse dado tímidos sinais de melhora nos episódios anteriores, ele entra no lugar ainda como o personagem infantiloide e controverso da primeira temporada, o único que teve algum índice de rejeição entre os espectadores, e sai de lá completamente transformado, vestindo um terno e cumprindo o programa de doze passos, pedindo desculpa pra todo mundo que ele encheu o saco na vida.
Dito isso, tô esperando ansiosamente a estreia da terceira temporada mês que vem.
eu achei a segunda temporada do urso um porre. To dispensando aquele nivel de ansiedade e stress. E o que dizer do casal carmel e médica? Diretamente de Dawson's Creek. DERMELIVRE.
Aquele restaurante que transformou o primo deveria oferecer serviços de terapia 😃