Mais uma quarta-feira e mais uma edição de Semana praticamente encerrada, a newsletter de quem já está tocando a bola de lado, esperando o cronômetro apontar seis da tarde da sexta-feira.
Agradeço todo mundo que assinou a versão paga (10 reais por mês ou 100 por ano) porque isso aqui dá trabalho, embora não pareça. A inteligência artificial botou todo esforço laboral sob suspeita, mas juro que ainda sou muito burro e incompetente pra ajudar o ChatGPT a me ajudar.
Nesse número termino “O circo chegou", a saga do vizinho que me odiava; publico meus cartuns e conto pra vocês o que curti em “Bebê rena” e o que acheio meio blé em “Segredos de um escândalo”. Bom fim de semana!
O CIRCO CHEGOU - PARTE 3 (FINAL)
O que se faz depois de limpar merda humana da porta da sua casa porque um vizinho cismou que você faz parte da conspiração de uma instituição de ensino que teria mandado você alugar um apartamento em frente ao dele para espioná-lo?
Bom, eu contei até cem e resolvi aumentar o tom da cobrança em cima da família do cara. A autoridade competente, a tal síndica terceirizada, já havia abandonado sua postura de má vontade disfarçada para assumir de vez o lado do meu vizinho, sugerindo que eu procurasse outro lugar para morar, desprezando o fato de que havia acabado de renovar meu contrato de aluguel.
Enfim, seus familiares designaram um tutor — se não me falha a memória, um ex-cunhado — e passei a exigir alguma providência. Internação, tratamento, mudança, qualquer coisa. O sujeito parecia bem razoável — e também tremendamente cansado de assumir a responsabilidade de representar alguém em evidente estado de desagregação. Além disso, mobilizei alguns conhecidos do meu vizinho que se sensibilizaram com a minha situação e tentaram fazer o cara cair na real — inclusive um dos seus colegas de banda.
Pelo menos não teria mais que lidar com a mãe do sujeito, que cada vez mais parecia inclinada a tratar o surto do filho como um capricho infantil. Depois soube que costumava acobertar várias infrações mais graves — na última vez, algumas semanas antes, tinha escondido o cara quando ele atropelou alguém na rua com a sua moto. Sim, a sua potencial letalidade do meu adversário tinha esse dado agravante.
A intervenção do tutor pareceu funcionar: durante um tempo ele se acalmou.
Até que, num dia em que eu cheguei da rua particularmente estressado, o sujeito começou a berrar no corredor repetindo as mesmas acusações doidas contra mim. Aquilo já tinha se estendido além do necessário; finalmente tomei a decisão de esquecer os intermediários e ligar para o SAMU, crente que uma descrição do que sofri naquele período (agora já contando alguns meses) seria o suficiente para que meu vizinho fosse removido para alguma unidade.
Eu claramente não tinha familiaridade com o sistema: funcionários do serviço não podem entrar em nenhuma residência sem autorização do morador responsável, no caso a mesma mãe que estava empurrando a situação com a barriga desde a nossa conversa. Mas o telefonema não foi de todo inútil; perguntei para o atendente o que poderia fazer nessas circunstâncias, e ele me aconselhou a ligar para a polícia mesmo — de preferência, em uma nova ocorrência de surto.
Assim que desliguei o telefone o vizinho voltou a gritar, agora de dentro do seu apartamento. Não ia mais esperar mais um dia, estava resolvido a acabar com aquilo.
Fui no armário do meu quarto e peguei um taco de sinuca — ironicamente, um presente daquele mesmo amigo que tinha em comum com meu arqui-rival maníaco — e fui até o apartamento em frente. Bati na porta com o taco e chamei o cara para resolver a questão ali mesmo no corredor.
Como imaginava, o sujeito não quis pagar pra ver. Mas o que eu não tinha antecipado era a presença da mãe dele, que havia saído mais cedo — ela surgiu na minha frente subitamente, quando meu vizinho entreabriu a porta, me desafiando a jogar o taco fora e encarar uma luta corporal mais justa.
Nesse exato momento me arrependi da minha estratégia improvisada, mas como estava funcionando, sufoquei qualquer piedade que senti por aquela velhinha: aproveitei a excitação do cara para voltar correndo em casa e ligar para a polícia, estendendo o celular na direção da porta, por onde era possível ouvir suas imprecações contra mim.
Dessa vez fui prontamente atendido:
Os policiais pediram que meu vizinho e sua pobre progenitora fossem até a delegacia mais próxima para prestar depoimento — e me disseram para aguardar algumas horas, esperando o fim do atendimento da dupla, e também fosse até lá registrar uma queixa.
A partir daqui a história fica menos tensa — foi a última vez que eu e meu vizinho trocamos qualquer palavra — e mais surreal.
Na delegacia soube que seu depoimento tinha sido sóbrio e cauteloso. Não podia negar que havia me assediado — tinha muitas testemunhas para corroborar minha história — e não podia seguir com sua teoria da conspiração sem parecer, bem, maluco. No fim das contas havia algo de performático e consciente no seus acessos de fúria.
Mas tive uma surpresa engraçada com o policial que tomou meu depoimento. Quando me apresentei, percebi que ele usava uma touca, mas não prestei atenção de que tipo — até a hora que uma amiga, que me acompanhou naquela missão, estendeu a mão para cumprimentá-lo. Ele evitou o gesto e se voltou para mim:
“Não posso apertar a mão da sua amiga”.
Foi aí que reparei no ornamento da sua cabeça: era uma takia, um daqueles gorros de crochê vazados muito comuns entre os muçulmanos. O policial explicou que tinha se convertido recentemente ao islamismo, o que me causou um breve estranhamento porque ele era louro, catarinense e tinha um sobrenome alemão. Não podia encostar em uma mulher não-muçulmana, explicou.
O policial tinha um jeito agitado e assim que soube que eu havia trabalhado na Globo fez questão de fazer uma tour na delegacia para mostrar os problemas de estrutura do prédio, como se eu fosse um setorista do RJ TV. Depois que expliquei que era roteirista, me perguntou se por acaso não tinha planos de passar em breve na Biblioteca Nacional, onde nunca tinha tempo de ir para inscrever seu livro de ficção no cadastro de obras inéditas. No romance, ele fez um breve resumo, um caso de homicídio era investigado por figuras do folclore brasileiro como o Saci Pererê e a Yara. Fez questão de me dar uma cópia; o livro não tinha mais de cinquenta páginas, que eu li com fascinado horror.
A partir dessa pequena interação surreal, peguei o boletim de ocorrência e procurei um advogado que me sugeriu uma acareação com o vizinho e seu tutor — no mínimo teria meu caso registrado diante de um juiz, o que tornaria qualquer reincidência um agravante.
A data da audiência foi marcada, e tive altos picos de ansiedade até o dia em que sentei com meu advogado diante do juiz, do tutor e do meu vizinho. Mas a coisa toda acabou sendo uma grande farsa. Havia uma amizade antiga entre o tutor e o juiz, que tratou tudo como uma bobagem corriqueira, e não um processo de meses com ameaças quase diárias. Em um tom muito condescendente, fez meu vizinho prometer que aquilo não ia se repetir — menos mal que sob pena de uma multa de dez mil reais. E de fato: nos quatro anos em que segui morando no mesmo endereço nunca mais nos cruzamos, nem no diminuto hall dos elevadores.
Mas o caso tinha que terminar com uma nota absurda. Assim que a acareação acabou, o juiz, que havia tentando emplacar comentários pretensamente engraçados em cada frase proferida, estendeu um cartão com um endereço de um site, pedindo que conferíssemos seu trabalho paralelo. Pedia um pouco de boa vontade, porque ainda estava começando no ramo:
“Juiz fulano de tal — piadas jurídicas".
FIM
Arnaldo's crapbook
Meu caderninho de rascunho
Nessa seção falo de um filme (ou série, ou livro etc) que caiu bem e de outro filme (ou série, ou livro etc) que não bateu. Nem sempre vou tratar dos últimos lançamentos, principalmente no caso das coisas de que não gosto — porque o desagrado, assim como o Bolsonaro, precisa ser devidamente processado.
O julgamento da vítima
Bateu: “Bebê Rena", 2023
Um comediante se virando como bartender é gentil com uma cliente e ganha uma stalker obcecada, capaz de mandar diariamente centenas de emails e mensagens de SMS que faz questão de assinar com um “enviada do meu iPhone”, geralmente errando a grafia. O problema é agravado porque o comediante tem sérios problemas de autoestima e fica meio que lisonjeado em vez de aterrorizado — e, inconscientemente ou de propósito, acaba encorajando a relação doentia.
É uma boa premissa, mas a trama ganha mais interesse quando descobrimos que a história aconteceu de verdade com o autor e protagonista de “Bebê Rena”, o humorista escocês Richard Gadd. Assim, cada decisão imbecil do cara ao lidar com a situação durante os sete agoniantes episódios faz com que a gente reaja com mais intensidade aos pontos de virada da história — e com muito mais vontade de julgar. Taí uma coisa que gera bastante engajamento.
Mas quando a gente fica a ponto de abandonar a série, torcendo tanto que algoz e vítima tenham o pior desfecho possível, um flashback surge pra gente entender um pouco melhor o comportamento do protagonista. Mesmo que o espectador ache esse resgate de uma memória traumática um truque barato para justificar atitudes decididamente cretinas, é impossível não assistir os últimos episódios com outros olhos.
Por essa razão muitos reclamaram das liberdades que Gadd teria tomado com a história, já que “Bebê rena” botou os detetives de internet em ação para apurar cada detalhe do caso, registrados em matérias e em trechos dos processos que a suposta stalker da vida real enfrentou. Mas como todo mundo já deveria saber, a realidade é narrativamente imperfeita e nenhum relato está isento de reestruturação para fins dramáticos. Me lembrou de um amigo que dirige novela evangélica da Record falando sobre a necessidade de inventar novos personagens porque os que estão à disposição na Bíblia não sustentam meio episódio.
“Bebê Rena” bateu pra mim também por uma questão de conjuntura. É particularmente recompensador para um roteirista enfrentando maior crise da história do setor audiovisual saber que alguém conseguiu vender um projeto desses para um executivo cuja função principal é dar satisfação pra acionista. E em um mundo em que uma porcentagem enorme da produção de conteúdo pertence à Disney, é uma alento ver estourar uma série que discute saúde mental, uso de drogas, assédio moral e abuso sexual. “Bebê rena” definitivamente não é “Ted Lasso”.
Crítica comportamental foda
Não bateu: “Segredos de um escândalo”, 2023
O filme que não bateu pra mim também está nessa categoria da discussão entre os limites da realidade e sua representação pela arte: “Segredos de um escândalo”, que ganhou a indicação para o Oscar de melhor roteiro original com uma história que já foi contada milhares de vezes. Resumo: “atriz do método tenta aprender mais sobre seu papel convivendo com a personagem real que o inspirou e acaba indo além do limite do seu dever de casa”. Nessa linha sou mais o clássico da Sessão da tarde “Aprendiz de feiticeiro”, um tremendo fracasso de bilheteria de 1991.
“Segredos” é uma espécie de “A malvada” invertido, em que a atriz consagrada é quem tenta roubar a vida de uma mulher comum; onde a mulher comum em questão é a Julianne Moore e a atriz, a Natalie Portman. E por que estão fazendo um filme sobre a vida de Moore? Porque ela virou uma sensação dos tabloides nos anos 90 quando teve um caso extraconjugal com um garoto de treze anos — e até hoje mora com ele, sendo tratada como a Geni local embora lide com a hostilidade dos vizinhos como se fosse um incômodo menor, um fato da vida como a falta de hospitalidade de um curitibano médio.
O filme tem uma série de problemas, um deles ostentar o evidente orgulho de dispor de duas grandes atrizes numa trama super meta sobre a arte de atuar, e se basear principalmente nisso pra contar com a nossa boa vontade. Infelizmente o personagem da Natalie Portman não é bem construído a ponto de fazer a gente se interessar por seu método de atuação ou sobre qualquer coisa a respeito da sua trajetória.
Além disso, a única coisa extraordinária sobre a vida do casal é mesmo o caso de adultério / pedofilia que deu partida na relação décadas atrás, e o trauma não transformou nenhum dos implicados em personagens bem desenvolvidos. No máximo deixou o garoto, que foi jogado na vida adulta precocemente, um tanto imaturo e chorão.
Os dramas da família parecem muito banais para ser exploradas por alguém com intenções artísticas profundas — e esse acaba sendo o punchline, a piada que fecha a última cena: depois de todo o pretenso mergulho profundo na personalidade do seu objeto de estudo, Portman termina atuando em um filme sensacionalista que só explora o aspecto sexual do escândalo.
Enfim, uma crítica comportamental foda.
Fala qual é a banda, Arnaldo
Amei esse relato do imbroglio com o seu vizinho! E, como é fato sabido que você escreve tãããão bem, podia se dedicar ao projeto de publicar LIVROS (originais ou coletâneas), nos possibilitando ter em mãos algo menos etéreo e efêmero do que o texto de um programa de humor, ou de uma newsletter semanal, volátil. Seus textos são de ler e reler, não dá pra gente deixar pra trás de uma hora pra outra, tem muita "sustância", como dizia meu pai. O quanto você tem pra dizer, contar, inventar não cabe nesses (preciosos) pingados. Já estou a par do lançamento do Bíblia, e torço pra que seja esse o início de um novo (e paralelo) caminho. Tá feita a sugestão de uma apreciadora assídua de tudo que você desenha e escreve.