Mais uma quarta-feira com a newsletter Semana praticamente encerrada na sua caixa de entrada — ou de spam, se você me odeia e só está tentando me iludir com uma falsa sensação de sucesso enquanto meu esforço intelectual vai direto para o lixo eletrônico.
De novo peço para quem puder assinar a versão paga (10 reais por mês, 100 por ano) que o faça — porque isso aqui dá trabalho, ao contrário do mercado de trabalho em que ainda insisto em operar (emoji de carinha triste).
Nesse número falo da enorme ficha que caiu em cima dos reaças que curtiam “The boys” sem entender — uma façanha porque a série não é exatamente “O ano passado em Marienbad”; publico mais uma série de cartuns no meu caderno de rascunhos; escrevo sobre o que gostei em “Os Rivais” e a respeito daquilo que gostaria de ter gostado em “Garra de ferro”.
O direito de interpretar errado
Outro dia — na verdade foi mês passado mas eu tô com muito assunto pendente — estreou a quarta temporada da série “The boys”, mais um produto cultural que usa o gênero de super herói para comentar os últimos acontecimentos políticos, uma adaptação dos quadrinhos inspirada em antecessores como “O Cavaleiro das Trevas” e Watchmen”, e os espectadores de direita surtaram. Não porque os autores resolveram mudar a trama para transformar os personagens favoritos do público conservador em vilões — mas porque eles pesaram a mão para que esse público finalmente entendesse que eles sempre foram.
“The boys” nem chega a ser uma alegoria perspicaz — parece mais com um daqueles cartuns do início do século passado onde legendas sublinhavam o que cada elemento do desenho representava — mas essa ausência de sutileza não impediu a confusão. Talvez seja uma boa ideia botar a explicação de cada episódio em closed captions pra ninguém mais entender errado.
Esse estado de negação não é novidade: a direita nunca se reconheceu nem nos milionários malvados que estavam sempre querendo construir um shopping center em cima de um parquinho para as crianças nos filmes da Sessão da Tarde. Sim, aquele cachorrinho esperto que ajudou a turminha do barulho a impedir a vitória da imobiliária do mal era na verdade uma espécie de mascote do MTST.
Não adianta mostrar o vídeo em que o George Lucas conta que se baseou no exército comunista norte-vietnamita para criar a Aliança Rebelde, essa galera sempre vai perceber a crítica com o sinal trocado, como um narcisista enxergando o que quer no espelho. E a coisa piorou na era da pós-verdade porque esse povo sacou que o ato de declarar que se é alguma coisa — honesto, patriota, homem de bem, da família, de Deus — vale tanto quanto ser de fato.
Não basta assimilar errado, eles querem ter o direito de afirmar que os autores é que interpretaram seu trabalho incorretamente. Faz sentido, é bem mais difícil ter o trabalho de escrever sua própria série de sucesso.
Arnaldo's crapbook
Meu caderninho de rascunho
Nessa seção falo de um filme (ou série, ou livro etc) que caiu bem e de outro filme (ou série, ou livro etc) que não bateu. Nem sempre vou tratar dos últimos lançamentos, principalmente no caso das coisas de que não gosto — porque o desagrado, assim como o Bolsonaro, precisa ser devidamente processado.
Rebatendo bola, segurando vela
Bateu: “Challengers” (2023)
“Rivais” bateu forte como o Andre Agassi dando um ace, e olha que o meu interesse por tênis é da época em que o Andre Agassi conseguia flexionar o braço para dar um ace. O diretor Luca Guadagnino emplaca mais um sucesso com esse drama de esportes supostamente erótico — apesar do fato de que, em um total de quatro cenas de sexo, três sejam coitos interrompidos, e na outra a câmera se afaste do centro da ação como em um filme puritano dos anos quarenta.
Na trama um fenômeno do tênis feminino representado pela Zendaya faz parte de um triângulo amoroso — onde ela é a vela — com o casal platônico de tenistas iniciantes formado por Mike Faist e Josh O’Connor. Eu digo platônico porque depois de arrebentar o joelho na quadra, a atleta precocemente aposentada resolve virar treinadora e esposa de Faist, afastando-o de O’Connor, com quem teve um breve caso. Corta para anos depois quando os caras, já no outono de suas carreiras, se reencontram para um tira-teima na quadra de um torneio caça-níqueis.
É um filme sobre tensão sexual e poucas atividades servem tão bem de metáfora para o intercurso carnal quanto um esporte em que você passa três horas mordendo a língua e gemendo enquanto lança olhares desafiadores para tentar desestabilizar o adversário. Guadagnino, que já fez o Timothée Chalamet transar com um pêssego em uma cena bem melada de “Call me by your name”, aqui está pleno em seu elemento.
Outro dia ouvi quase todos os participantes do Next Best Picture Podcast reclamando que esperavam que o personagem da Zendaya fosse mais ativo na história — mas além do cinema não existir para satisfazer expectativa de crítico fica evidente que ela é a força motriz da porra toda quando, a pretexto de apenas assistir “some good fucking tennis”, basicamente faz dois caras passarem a vida separados só para admitir que não podem viver sem o outro.
Importante e dispensável
Não bateu: “Iron claw” (2023)
No filme “American fiction” os personagens de Jeffrey Wright e Issa Rae conversam sobre obras literárias que mostram a realidade da experiência negra na América: “é o tipo de livro que os críticos chamam de importante e necessário, mas não de bem escrito”. A frase é uma zoação com o paternalismo da intelligentsia branca em relação à produção artística das minorias, mas para mim serve como comentário preciso sobre “Garra de ferro”, que trata com dignidade as questões da masculinidade tóxica e da saúde mental sem fazer isso através de uma trama envolvente.
“Garra” conta a história real dos Von Erich, irmãos famosos por competir em torneios de luta livre que, instigados por um patriarca obcecado em alcançar através dos filhos metas que nunca conseguiu atingir na própria carreira, inadvertidamente levou quase todos a um fim trágico — apesar de todo mundo atribuir esses infortúnios a uma maldição familiar. Falta de terapia dá nisso, na ausência de escrutínio para os pecados dos pais.
Resumida assim, a história parece interessante, mas a forma como os eventos são dispostos no filme — com a simples enumeração de episódios infelizes e a sucessão de enterros e processos de luto, sem um encadeamento trabalhado para estabelecer uma relação de causalidade entre eles — deixa a gente quase acreditando que alguém pegou mesmo o nome do clã e costurou na boca do sapo. Um outro título para o filme poderia ser “Os incels suicidas".
A postura fatalista dos irmãos, que levam algum tempo na trama para dar vazão a seus ressentimentos em relação à maneira como foram criados, também nos deixa meio sem muita vontade de lamentar os mortos e feridos nesse drama protagonizado por marombeiros de collant. Um desperdício de ótimas atuações e das séries de supino do Zac Ephron.
O facista atual só está do lado certo da história que ele mesmo inventou. 🫠