Essa é a oitava edição da newsletter Semana praticamente encerrada, a newsletter que só tem um público-alvo comprovadamente interessado — eu — e todo o resto é formado de vítimas colaterais.
Na última semana fomos todos possuídos pelo espírito olímpico, quando nos emocionamos com histórias de superação, nos unimos na torcida pela recompensa do esforço dos nossos atletas e esquecemos que no resto do tempo costumamos ser pessoas horríveis. Pena que dura pouco; se a competição se estendesse até o final do ano poderíamos viver um pouco mais essa ilusão de que teremos um futuro melhor.
Mas como isso é impossível continuo pedindo sua contribuição para que ao menos eu tenha algum futuro. E os seus dez reais por mês ou cem reais anuais podem ser os tijolinhos com os quais construirei meu bunker para me proteger do apocalipse zumbi. Lembrando que não ofereço vantagem nenhuma para os assinantes pagos além da minha sinceridade no tocante a essa questão.
Nesse número: falo de Venezuela — a contragosto, como vocês verão; digo o que me encantou na biografia de James Baldwin escrita por David Leeming e do que me deixou bolado na cobertura dos jogos olímpicos. Além disso, cartuns, opiniões, pedidos de desculpas e notas de desagravo e de repúdio. Boa quarta-feira pra vocês.
Quem se importa
A última mania nas redes sociais é sinalizar a ocorrência de uma assim chamada pauta importada, ou seja, que não faz sentido discutir em território nacional e que está sendo artificialmente inserida na agenda de problematizações do brasileiro. Tem até certificado unindo esse conceito ao meme do Haddad taxador, outro hype meio irritante da internet:
Essa ressalva até se encaixa em alguns casos, embora muitas vezes o argumento seja usado para interditar discussões legítimas — só lembrar que durante a ditadura circulou a teoria de que o movimento negro não tinha lugar no Brasil porque aqui existia uma democracia racial, risos. Mas tem uma pauta que exala muito essa vibe de conversa de gringo: Venezuela.
O simpático país cujo esporte mais popular é o beisebol teria muito mais paz se não estivesse sentado na maior reserva de petróleo no mundo. Mas como infelizmente está, é objeto de interesse de várias potências que fingem que sua maior preocupação com a Venezuela é o estado da sua democracia. E como temos uma imprensa que adora prestar serviços para esses democratas de fachada a gente fica o tempo todo sendo chamado para dar palpite na soberania alheia.
Como se não bastasse, a Venezuela é o maior espantalho oco do nosso debate político. É só lembrar — pra quem pode, né, às vezes esqueço da minha idade avançada — que em 2002 a campanha do José Serra já dizia que se o Lula vencesse o Brasil ia virar uma Venezuela, sendo que os números da economia venezuelana eram bem melhores do que os do Brasil de FHC. Tanto é que não deixaram nosso grande estadista retroativo* subir no palanque do candidato tucano à sua sucessão porque senão o Serra perderia de muito mais.
Pior que o mesmo José Serra repetiu o discurso contra a Dilma em 2010, provando que tem muito aluno repetente que acredita em conseguir resultados diferentes a partir de uma mesma experiência, e que esse assunto não tem muita ressonância em parte significativa do eleitorado. O fato de que mesmo assim segue firme e forte nas manchetes prova que sua reincidência é artificial e serve a interesses que nada tem a ver com sua relevância no Brasil real.
E o que eu acho da Venezuela? Bem, posso dizer que o Maduro é um Javier Milei do mundo bizarro e que os opositores que tentam dar um golpe de estado desde que eram uma minoria sem respaldo interno mas muita, digamos, torcida dos Estados Unidos, são tão ruins quanto, talvez piores.
E mais não falo porque não sou obrigado — não vou cair na sua pilha, gringuito de mierda, lacayo de la CIA.
* — pois só pôde ser pintado desse jeito anos depois, quando o pessoal já tinha esquecido o desastre que foi seu segundo mandato
Arnaldo's crapbook
Meu caderninho de rascunho
Nessa seção falo de um filme (ou série, ou livro etc) que caiu bem e de outro filme (ou série, ou livro etc) que não bateu. Nem sempre vou tratar dos últimos lançamentos, principalmente no caso das coisas de que não gosto — porque o desagrado, assim como o Bolsonaro, precisa ser devidamente processado.
Da próxima vez, o fogo
Bateu: “James Baldwin: a biography” — David Leeming (1994)
Acho meio idiota usar a expressão “bateu” pra falar de um livro. Deve ter a ver com o fato de que, depois de certa idade, se a gente completa a leitura de algo tão desafiador para a nossa pobre atenção sequestrada quanto um livro de mais de trezentas páginas é evidente que ele bateu — ou já estaria jogado na seção da estante com a etiqueta “eu tentei”. Bom, fui eu quem escolhi o nome e o formato dessa coluna, agora é aguentar — essa é a história da minha vida, sempre vítima das consequências nefastas das minhas próprias escolhas.
E “James Baldwin: a biography” de David Leeming era uma barbada. Baldwin (que faria 100 anos este mês) é um dos meus escritores favoritos e a biografia publicada por seu secretário — na verdade um deles, tinha tantas atividades que precisava de vários braços para ajudar a dar conta de tudo — traça um panorama completo sobre o autor meticuloso e o homem complicado que outras testemunhas confirmavam que ele era.
JB criou uma obra que instrumentalizava sua vida íntima e suas tribulações como intelectual negro e queer para comentar os temas maiores que eram inevitáveis na vida de quem nasceu em um país segregado e que mais tarde seria agitado pelo movimento pelos direitos civis — do qual foi um dos atores mais relevantes.
A biografia nos leva do tempo em que cresceu no Harlem — o filho adotivo de um pastor que era submisso às autoridades brancas e brutal com seus familiares porque era a única forma de exercer o poder que seu papel de provedor exigia — até o sucesso de Baldwin como escritor, quando elaborou nos seus livros essa mesma pressão social que quebrou homens como o padrasto, morto ainda jovem, completamente enlouquecido. Acompanhamos também seu périplo por outros países (França, Turquia, Suíça) onde podia escrever com algum alívio do fardo massacrante de ser um negro homossexual nos Estados Unidos — quando era obrigado a lidar constantemente com a contradição de passar por tais sofrimentos na autoproclamada Terra da Liberdade.
O livro foi publicado em 1994, sete anos depois de sua morte, e, embora outros relatos sobre vida e obra de Baldwin tenham surgido de lá para cá, principalmente porque seu prestígio cresceu enormemente e com ele a certeza da solidez do seu legado, esse me parece uma das descrições mais honestas de sua trajetória pela sobriedade com que Leeming trata o biografado mesmo com toda a intimidade que tiveram.
Por se recusar a ver o homem branco como inimigo, tanto por sua formação religiosa quanto por acreditar que a opressão também causa dano ao opressor, Baldwin foi considerado por alguns um conciliador, mas esse é um retrato injusto. Pelo contrário, tinha mais afinidades com a mensagem de conflito de Malcolm X do que com a pregação da não-violência de Luther King — lembrar que um dos seus livros de ensaio mais famosos (“Da próxima vez, o fogo”, 1963) falava de sua aproximação com os muçulmanos negros e profetizava, através da canção tradicional que inspirou seu título, que sem a capitulação só resta a ira:
God gave Noah the rainbow sign /
No more water, the fire next time
Mínimo denominador comum
Não bateu: a cobertura das olimpíadas por influencers (2024)
Na internet 1.0, na era dos blogs e dos primeiros rascunhos de rede social, quem gostava de comédia tinha um grande inimigo: o Zorra Total. O humorístico da Rede Globo era usado como exemplo de programação televisiva baseada no mínimo denominador comum, na ideia que um executivo da emissora fazia da capacidade cognitiva da classe C que formava o grosso de sua audiência. Alegando que era disso que o povo gostava, a Globo não oferecia nenhuma alternativa para fazer o contraponto.
A crítica fazia sentido, tanto é que os roteiristas do programa acabaram mudando de abordagem, apostando em um formato mais ousado — tudo bem que depois de outras experiências bem sucedidas, como o Porta dos Fundos — fazendo sucesso de público. O que estava errado nos argumentos dos críticos do Zorra original era a plataforma que apontavam como a tábua de salvação: a própria internet. Com as alternativas de autopublicação, a audiência, tornada produtora de conteúdo, mostraria seu verdadeiro gosto, e nunca mais dependeria do palpite dos diretores de programação para ser verdadeiramente representada na tela.
Pois esses novos produtores de conteúdo, deixados à solta, acabaram reproduzindo o Zorra Total em laboratório. Os influencers ditos engraçados trouxeram de volta o humor de bordão, a graça estritamente baseada em suas personalidades extrovertidas e o histrionismo que caraterizavam o velho Zorra — salvo algumas exceções, claro.
Na cobertura dos jogos olímpicos, com a necessidade de botar no ar gente com muitos seguidores (“que possam agregar”, como diria um especialista de mídias digitais) em vez de profissionais da reportagem, alguns canais encheram as ruas de Paris de palpiteiros engraçadinhos que estão produzindo mais momentos constrangedores do que viralizando com boas sacadas.
Nada contra os humoristas de TikTok, mas acredito que a rejeição que estão enfrentando traz uma lição de humildade: talvez exista um bom motivo para a separação da programação em editorias, e quem sabe haja, como achavam os executivos do passado, hora certa pra fazer piada.
👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏