Você vai começar a ler a nova edição da newsletter do Arnaldo Branco, Semana praticamente encerrada. Relaxe. Concentre-se. Afaste todos os outros pensamentos. Deixe que o mundo a sua volta se dissolva no indefinido.
Os detetives de começo de livro já perceberam que eu estou citando as primeiras linhas de “Se um viajante numa noite de inverno”, grande canetada do Italo Calvino, mas se você não leu esse clássico imperdível da literatura não sinta indesejado nesse espaço. Eu também não li.
De novo faço o apelo para que os habitués dessa missiva eletrônica assinem a versão paga, que é igual à gratuita mas por algum motivo vale dinheiro. É tipo um NFT. Mas por favor, façam isso sim porque a bancada lobista dos canais de streaming está sentada em cima de um projeto de lei que poderia fazer a minha vida de roteirista por ora desempregado um pouco mais fácil.
Outra coisa que vocês podem fazer por mim é adquirir o meu livro:
Nesse número falo da síndrome dos cineastas que usam sua obra para elaborar seu constrangimento por ter empregada; escrevo sobre o que me falou ao coração em “Os rejeitados” e o que eu achei bem blé nos trezentos documentários sobre bastidores de clubes de futebol que são rigorosamente iguais e chatos pra caralho. Ah, e tem cartuns também.
E enquanto você lia isso o mundo a sua volta se dissolveu no indefinido. Aproveite.
Solução doméstica
Outro dia viralizou um post no twitter dizendo que o cinema brasileiro só tem três assuntos, esse:
O sujeito logo tomou uma invertida de outro tuiteiro que chegou de voadora mostrando que suas premissas sugeridas literalmente já tinham sido transformadas em filmes no Brasil. Às vezes o viralatismo ganha como aliado a desinformação.
Mas é verdade que nossos realizadores exploram alguns gêneros sazonalmente, como aliás acontece com todos os diretores da indústria cinematográfica mundial. E no apanhado desatualizado do nosso amigo faltou citar um deles: o filme sobre a relação de culpa que a classe média tem com suas empregadas domésticas.
Sim, muitas produções, cada uma com graus diferentes de competência em sua execução, elaboram o mal estar que sente um cidadão de situação financeira estável que precisa lançar mão dos serviços de uma diarista. A gente tem até uma variante bilionária dessa vertente, “Santiago”, onde o João Moreira Salles estuda sua relação com um mordomo.
Talvez a tendência seja explicada pelo fato de que ficou muito óbvio que não era legal um cineasta formado na PUC explorar o tema da violência urbana fazendo filmes de ação na favela, onde as vítimas tem outra cor e status social. Sabendo que sua vida de queijos e vinhos não dá muito campo para a exploração dramática, sobrou para o nosso hipotético diretor que estudou no São Bento investigar o contraste entre sua existência algo banal e a rotina sofrida da sua trabalhadora do lar.
Pensando nisso, resolvi escrever três sinopses nesse gênero na esperança de encontrar uma produtora cheia de remorso burguês e verba:
Solução doméstica
Um roteirista precisa entregar um projeto sobre o abismo social brasileiro para um edital com essa temática, mas sente que sua abordagem é contaminada pelo fato de que nunca passou um dia na sua vida sem acesso ao seu achocolatado favorito. Ele passa a entrevistar sua empregada para conseguir alguma inspiração e ela acaba assumindo a tarefa de escrever o roteiro, meio como o gângster de “Tiros na Broadway". O filme é um sucesso de crítica, mas o roteirista não leva a doméstica para o festival de Gramado porque alguém precisa regar suas plantas.
Quase da família
Comédia estilo Globo Filmes onde uma família explora o trabalho da secretária do lar sem pagar nenhum benefício, com a desculpa de que ela é praticamente um membro do clã. A empregada então vai à justiça para também se tornar herdeira e, depois de uma sangrenta batalha nos tribunais, perde a causa porque esse precedente levaria ao colapso da economia brasileira.
Malcriada
Levemente inspirado em “O criado” (Joseph Losey, 1963) e “Hanyo, a empregada" (Kim Ki-young, 1960), é a história de uma doméstica que entra na mente de sua patroa através de jogos mentais elaborados, invertendo a relação de poder, passando a cobrar dela ainda mais asseio e pontualidade — mas deixando claro que a ex-dondoca não é da família porra nenhuma.
Tô disponível para contratação, beijos.
Arnaldo's crapbook
Meu caderninho de rascunho
Nessa seção falo de um filme (ou série, ou livro etc) que caiu bem e de outro filme (ou série, ou livro etc) que não bateu. Nem sempre vou tratar dos últimos lançamentos, principalmente no caso das coisas de que não gosto — porque o desagrado, assim como o Bolsonaro, precisa ser devidamente processado.
Filme adulto
Bateu: “The holdovers” (2023)
Fui uma criança esquisita que odiava ser criança. Ficava revoltado com o fato de que não podia fazer nada e que só os adultos tinham permissão para cometer as bobagens que quisessem; ia dormir no toque de recolher (depois do Jornal Nacional) torcendo para envelhecer logo. Estava sempre pensando “quando é que a ação vai começar?” Como diz a velha sabedoria de tatuagem, cuidado com o que desejas.
Deve ser por isso que cresci com um gosto meio inadequado para esses tempos de paladar infantil na produção cultural, com seus filmes de super-heroi e de dragão. Gosto de alguns, às vezes assisto por curiosidade ou para participar do evento global, mas em certos casos preciso me estapear para continuar prestando atenção — filmes de três horas estrelados por gnomos são minha ideia de tortura, não de diversão.
Geralmente gosto de tramas que tragam problemas da vida real para ser destrinchados por um maior de idade portador de um emprego — mesmo que esse emprego seja de caubói ou espião; filmes de gênero com algo além do aspecto camp me pegam legal.
Pode-se dizer que nos Estados Unidos o auge desse estilo “filme de adulto” se deu entre o final dos anos sessenta e meados dos setenta, quando a revogação do Código Hays (a diretriz que proibia palavrões na tela, por exemplo), a falência dos grandes estúdios e a revolução sexual abriram as portas de Hollywood para um bando de estudantes de cinema tarados pelas vanguardas europeias: Scorsese, Coppola, De Palma, Bogdanovich etc.
Foi um bonito momento, que acabou quando Spielberg & Lucas, os calouros dessa turma, inventaram o filme B de alto orçamento com “Tubarão” e “Guerra nas estrelas” — a partir daí a produção cinematográfica dos gringos passou a sofrer do mal de Benjamin Button.
Dito (tudo) isso, é perfeito que a história da dramédia “Os rejeitados” se passe no natal de 1970. A produção tem a sensibilidade da época e o mesmo interesse pela investigação das frustrações de um homem adulto médio, no caso o professor vivido por Paul Giamatti, um tipo rancoroso que é obrigado a pajear um aluno em recuperação numa instituição de ensino enorme e vazia com a ajuda de uma funcionária (Da'Vine Joy Randolph, sensacional) que acabou de perder seu filho na Guerra do Vietnã.
É uma trama clássica onde um grupo de pessoas muito diferentes acabam se entendendo — mais ou menos — pela força da convivência, mas o diretor Alexander Payne (“Sideways", “Os descendentes") não parece estar nessa pra ganhar prêmio de originalidade.
“Os rejeitados” é um filme que vai no seu tempo e faz rir e chorar — a cena em que Randolph dá o enxoval do seu filho morto para a irmã grávida é para tirar lágrima de estátua — e onde não se vê uma unidade de dragão. Além do mais, é sobre um rito de passagem, o processo de virar adulto. O velho que sempre habitou meu corpo e que agora está mais de acordo com a minha aparência agradece.
Temporada da marmota
Não bateu: vários documentários sobre os bastidores dos clubes de futebol (todo ano isso, vsf)
Acabo de assistir a série documental “Unidos: Manchester City Tricampeão” (2024) só pra confirmar pela enésima vez que esse formato de acompanhar a temporada de um time onde a equipe de filmagem ganha acesso total aos bastidores está, como a História de Burke, condenado a se repetir. Só minha tara injustificável por esse esporte cada vez mais corrompido pelo dinheiro e pelo marketing explica o fato de ter visto todos os que apareceram na minha frente até hoje.
Para mim, só duas dessas séries se destacam: “Sunderland até morrer” e “Bem-Vindos ao Wrexham”, ambos sobre azarões ingleses penando em divisões subalternas. No caso do primeiro documentário a coisa funciona porque o acesso se estende dos jogadores e comissão técnica até os empresários, que estão sempre desesperados atrás de contratações para montar um time minimamente competitivo — e porque todo desastre passível de acontecer com um clube de futebol acontece com o pobre Sunderland.
O segundo vale pela premissa bizarra: o time, uma relíquia chamada Wrexham Association Football Club, é comprado pelos atores Rob McElhenney e Ryan Reynolds — que não sabem nem as regras básicas do tal soccer — e tudo que acontece depois parece um roteiro encenado para mostrar que mesmo uma instituição amada e enraizada numa comunidade cheia de valores tradicionais pode ser maculada pela vontade de aparecer de uma dupla celebridades entediadas e com dinheiro sobrando.
Os outros são rigorosamente iguais, como esse do Manchester City. É incrível que com todo o passe livre a produção não consiga pegar um jogador de guarda baixa — e nem em um momento inspirado; todas as falas remetem às entrevistas de beira do gramado onde só se faz elogiar o esforço dos companheiros (ou lamentar sua desatenção) e enaltecer o “professor", que no caso é o palestrante motivacional chato do Guardiola. E os depoimentos para a câmera são igualmente inócuos, cheio de piadas internas que não interessam a ninguém.
E olha que a jornada do Manchester City entre 2022 e 2023 foi cheia de acontecimentos felizes, como o título está dizendo: os caras ganharam a Liga dos Campeões, a Copa da Inglaterra e o Campeonato Inglês. Eu diria que eles poderiam a aprender a celebrar como os brasileiros, mas não posso afirmar isso porque também vi “Tudo ou nada: Seleção Brasileira” onde a comemoração pela vitória na Copa América de 2019 é igualmente chocha. E ainda por cima tem o palestrante motivacional chato do Tite.
"Um roteirista precisa entregar um projeto sobre o abismo social brasileiro para um edital com essa temática, mas sente que sua abordagem é contaminada pelo fato de que nunca passou um dia na sua vida sem acesso ao seu achocolatado favorito".
Hahaha! Amei isso, maravilhoso!
Sim, a indústria audiovisual é 99% elitizada, o que é muito triste porque a gente acaba sendo limitado pelo viés hipócrita esquerdo-burguês. Todos nós inclusos nisso. Uma miopia de vida.
já posso encerrar minha semana, arnaldo?!