Jesus is coming, look busy
Agora tá rolando essa tendência de fazer pergunta pra inteligência artificial e publicar a resposta como se fosse jornalismo, exemplos abaixo:
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A primeira matéria me sensibilizou porque me dei conta que a IA tá tirando emprego até da Márcia Sensitiva e a segunda me deixou sem entender nada porque quando o Maradona morreu, pouco antes do Pelé, o Cristiano Ronaldo estava em viés de baixa com 35 anos e o argentino já tinha se manifestado sobre essa mania do português de votar em si mesmo pra melhor do mundo — ele disse algo como “para de falar merda".
É isso, estamos vivendo o fim do mundo como se fosse um fim de expediente: ninguém tá mais fazendo seu trabalho direito porque não faz mais sentido caprichar faltando tão pouco pra dar a nossa hora. Estamos tocando a bola para o lado, só tentando parecer ocupados.
Infelizmente os caras que mandam os boletos seguem levando o serviço a sério (pra cobrar eles são bons!) e por isso sigo pedindo aos leitores mais abnegados que assinem a versão paga dessa newsletter — 10 por mês, 100 por ano — mesmo que ela seja aberta pra geral (“Por quanto tempo? Ele se perguntava com um sorriso enigmático").
Quem se compadecer da minha situação pode contribuir com qualquer valor na chave pix arnaldo.branco@gmail.com — ou se tiver mesmo um espírito caridoso, adquirir meu livro “A bíblia tinha que ser um power point” que só não entrou na lista de mais vendidos porque ela não vai até a milésima casa decimal.
Nesse número falo da precariedade das instituições norte-americanas, teço loas ao documentário “Soundtrack to a coup d'etat”, meto o pau no filme “Y2K” e publico aqueles desenhinhos tremidos com letra ruim. Aproveitem enquanto não soa a hora final.
Estados Colados com Cuspe da América
O último mês não foi bom pra quem cultiva o mito do excepcionalismo americano, a tese de que os Estados Unidos foram colonizados por um povo moralmente superior e que carrega a missão de moldar o mundo de acordo com os seus princípios — um jeito de pensar que a humanidade entendeu como absurdo e perigoso quando vingou na Alemanha nazista. Bom, pelo menos foi assim em 1939.
Agora estamos vendo o desmonte do Estado por um ex-apresentador de reality show que conseguiu falir um cassino e uma cadeira gamer humana que faz carros que explodem. Todas as últimas notícias daquele país — o sequestro do Tesouro por uma gangue de moleques do reddit, a criação de uma divisão do governo baseada em um meme, o departamento da educação à mercê da ação do traficante de quetamina do Elon Musk — parecem sinopses de episódios da série Veep descartadas porque até a paródia carece de alguma verossimilhança.
Meu alívio cômico favorito pra tudo isso é ler as análises dos comentaristas que em novembro atenuaram a segunda vitória do Trump com o argumento de que os Estados Unidos têm salvaguardas e um sistema de pesos e contrapesos para evitar que o que está acontecendo efetivamente acontecesse. Como todo mundo que já leu aquela ata de reunião de condomínio que eles chama de Constituição, eu desconfiava que não seria bem assim — contratos costumam ser bem grandinhos por uma boa razão.
Agora a imprensa gringa tá correndo atrás do prejuízo, tentando se livrar da culpa por ter apoiado ou não ter enxergado a letalidade potencial da administração Trump 2 fingindo demência ou empurrando a responsabilidade pra esquerda — sim, segundo esse artigo do segundo link a mídia que ignorou a denúncia do fascismo chegou à conclusão que a denúncia do fascismo é que causa o fascismo.
Não que a esquerda esteja reivindicando o dom da profecia por ter disparado o alarme — quando você está lutando pela sobrevivência no meio do rebosteio o prazer de jogar na cara do outro um “eu te disse” reduz substancialmente. Confesso que estou achando engraçado ver bolsonaristas sendo devolvidos pro Brasil em estado de choque porque achavam que o discurso de campanha chamando latino de sub-raça não era com eles, mas tô ligado que os caras são apenas as primeiras vítimas de um governo catastrófico que deve afetar todo mundo.
Mas é isso: quem diria que normalizar a participação de gente como Trump e Musk na política ia acabar em saudação nazista e papo de invadir o Canadá? Todo mundo, a não ser a galera que foi ensinada desde cedo que um povo educado na base de puritanismo cristão e alimentado quase que exclusivamente de derivados do milho seria superior a alguém.
Arnaldo's crapbook
Meu caderninho de rascunho
Nessa seção falo de um filme (ou série, ou livro etc) que caiu bem e de outro filme (ou série, ou livro etc) que não bateu. Nem sempre vou tratar dos últimos lançamentos, principalmente no caso das coisas de que não gosto — porque o desagrado, assim como o Bolsonaro, precisa ser devidamente processado.
Jazz e revolução
Bateu: “Soundtrack to a coup d'etat” (2024)
“Não é sobre jazz, é jazz” disse um crítico citado no trailer de “Trilha Sonora para um Golpe de Estado” — muito a propósito, porque esse documentário originalíssimo na verdade é sobre o assassinato de Patrice Lumumba (1925 - 1961), o primeiro ministro da República do Congo, mas editado como se fosse um longo improviso dodecafônico sobre apropriação cultural, imperialismo, Dwight Eisenhower, Fidel Castro, Nikita Kruschov e, sim, jazz. Tá entre os indicados ao Oscar mas eu só descobri isso depois de assistir, sou meio atrasildo das ideias quando o assunto é premiação.
Esse bombardeio de imagens sensacionais serve a uma tese mais insinuada do que explicitamente desenvolvida. Segundo o diretor Johan Grimonprez, enquanto a guerra fria era disputada na África, com as primeiras manifestações pela independência das colônias insufladas pela União Soviética e sabotadas pelas potências ocidentais imperialistas, a CIA e o serviço de inteligência de seus países aliados promoviam shows de jazz no continente para servir de disfarce para a presença maciça de espiões e mercenários dispostos a tudo para manter o controle das riquezas africanas mesmo depois da desocupação do território.
Não é sobre a cumplicidade dos músicos, que só descobriram anos depois que serviram de bucha pros arapongas das colônias, mas sobre quanto cinismo é necessário pra sustentar o projeto capitalista — que fica claro nos depoimentos de arrombados como Adlai Stevenson, embaixador dos Estados Unidos na ONU.
Gênios como Charles Mingus, John Coltrane, Nina Simone, Dizzy Gillespie, Miles Davis, Melba Liston, Ella Fitzgerald (e mesmo o universalmente querido Louis Armstrong) estavam ligados em como os Estados Unidos tratavam a população negra desvalida em suas próprias fronteiras e no estrangeiro — revolucionários do quilate de Malcolm X e Andrée Blouin (a “Pasionaria Negra”) fizeram suas cabeças.
E não tem só jazz: brilham vários artistas da música congolesa (rumba, soukous, mutuashi) como Nico Kasanda (o “Docteur Nico”), Le Grand Kallé e a orquestra Rock-a-Mambo.
“Trilha Sonora para um Golpe de Estado” é uma colagem de imagens de arquivo, entrevistas, frases inseridas em legendas, áudios, em uma contagem regressiva que, presumimos desde o início, vai terminar com o sequestro e morte de Lumumba. É feito para instigar nosso instinto de rebelião, e nada melhor como som ambiente do que alguns dos compassos musicais mais revolucionários já escritos.
Deu tilt
Não bateu: “Y2K” (2024)
A produtora novaiorquina A24 tem uma boa média de acertos e mesmo quando dá luz verde pra algum projeto meia boca, costuma contar com a nossa boa vontade — afinal, só de não ficar empilhando remake e franquia, o estúdio já está contribuindo para o exercício da criatividade em um meio que está cada vez mais parecido com uma linha de montagem.
Dito isso, “Y2K” é o primeiro filme da A24 que eu achei indesculpavelmente ruim. Pra uma comédia de terror baseada em uma premissa simples — “e se o bug do milênio rolasse de verdade e não fosse só uma pane no sistema, mas sim uma rebelião das máquinas contra a humanidade?” — o desenvolvimento do enredo prepara muito mal o terreno.
Na primeira parte do roteiro, que se passa um dia antes da virada para o ano dois mil — quando computadores e aparelhos eletrônicos se voltam abruptamente contra seus donos sem nenhuma construção de clima — os personagens mal se referem a um possível colapso do sistema na noite do réveillon. Os espectadores com 25 anos ou menos que se virem pra descobrir o que rolou (na verdade não rolou).
“Y2K” me lembrou “Comboio do Terror”, que de certa forma também é um terrir — “de certa forma” porque nenhuma de suas piadas funciona — com um ponto de partida parecido. Por acaso “Comboio” é considerado um dos piores filmes já produzidos, o único dirigido pelo escritor Stephen King, que teve o bom senso de aposentar o megafone depois da reação negativa unânime de crítica e público.
Dirigido por Kyle Mooney, também um diretor de primeira viagem, “Y2K” só conta com a memória afetiva de quem sente saudade das janelas de chat do MSN, de Fatboy Slim tocando no CD player e de vídeos cheios de borrões de pixels que levavam horas pra carregar. Tudo nele é escrito e executado com preguiça: gags, assassinatos e o romance do casal protagonista insosso. A participação do Fred Durst (que era o cantor de uma banda chamada Limp Bizkit, leitor de menos de 25 anos) parece uma tentativa de repetir o efeito da aparição do Bill Murray em “Zombieland”, o que só prejudica “Y2K” pela comparação.
Enfim, nada que esgote o imenso crédito da A24. É só um toque pra ela ficar ligada.
O link do ESSE NÃO ERA O TRUMP QUE A AMÉRICA VOTOU parece um revival brasileiro de 2019 (só que com bombas atômicas)
Não vou negar que também senti um sabor vendo esses bolsominions voltando humilhados kkkkkkkkkk bem feito.