Dias de luta
Mais uma semana que está, como o diz o nome da newsletter, praticamente encerrada, mais um período em que trabalhamos numa escala de 7 X 0: sete dias de luta por zero dias de glória, tudo isso enquanto ficamos nas redes sociais lamentando nossos distúrbios psicológicos que são causados pelas redes sociais. Somos motoristas presos no trânsito e reclamando do trânsito, e o trânsito somos nós.
Como já disse pra minha terapeuta: se o capitalismo acabasse a gente ia ficar sem assunto. Mas como esse sistema quebrado só vai terminar depois do fim do mundo preciso ficar aqui pedindo assinatura paga por um conteúdo que vou continuar mantendo aberto, pelo menos por enquanto. Dez reais por mês ou cem por ano e fica tudo certo, freguês.
Outra forma de me ajudar a pagar a Dra. Paula é comprando meu livro:
Nesse número escrevo sobre como a ascensão da extrema direita me deixou meio saudoso dos tempos pré-internet; falo bem de “Brats” (o documentário, no plural, e não o disco da Charli xcx, no singular) e mal de “Jogo bonito” e vários outros filmes que desperdiçam o tema do futebol. E tem uns cartuns. Bora.
Nostalgia da dificuldade
Umberto Eco, quando explicaram para ele como o twitter funcionava: “cento e quarenta caracteres? Qual é o próximo passo, o urro?”
Eu sei que é difícil lembrar desse tempo remoto, mas quando essa frase repercutiu o escritor foi contestado como se fosse mais um idoso esclerosado gritando com as nuvens, para citar o meme do vovô Simpson. Eu mesmo, que ainda trabalhava como cartunista e achava o twitter um puta exercício para testar minha capacidade de concisão — às vezes o balão de diálogo toma muito espaço do desenho — achei que Eco estava agindo um pouco como a figura clássica do intelectual ressentido pela facilidade com que qualquer pessoa sem credenciais como as dele podia agora ter um lugar no palanque.
Muito da superioridade moral que os mais velhos sentem em relação às novas gerações vem de um sentimento que eu chamo de nostalgia da dificuldade. A ideia de que certas coisas precisam ser conquistadas através do sacrifício, com o candidato vencendo certos obstáculos — como por exemplo a mediação do mercado editorial, no caso dos escritores.
“No meu tempo você tinha que…” e aí insira todas as batalhas que uma pessoa enfrentava para publicar um livro, conseguir um táxi, ter calefação em casa. Lembrar que um povo da minha geração se sente quase veterano de guerra porque na nossa época o mertiolate ardia.
Sou velho o suficiente para ter vivido tais experiências mas me patrulho para não cair na tentação de sentir essa saudade do perrengue. Pra mim todos caras que cultuam coisas como as arquibancadas de concreto do Maracanã são completamente malucos.
Hoje o twitter permite bem mais do que cento e quarenta caracteres, se você pagar pelo espaço, mas o tempo deu razão pro Umberto Eco. O que a gente achava que era um ambiente democrático e relativamente livre de velhos turrões como o italiano — sei que parece mentira mas antes da sua compra pelo Elon Musk o twitter representava uma rota de fuga do Facebook — na verdade era uma armadilha para roubar nossa atenção e dar voz para gente que talvez mereça andar amordaçada.
Sim, porque o discurso de ódio que corre solto na rede social do Musk não é, como ele diz, tolerado em nome da liberdade de expressão — mas sim estimulado, não só porque é uma grande isca de engajamento como também porque o bilionário sabe que o sistema que permite seu pornográfico acúmulo de dinheiro está sendo cada vez mais contestado, e os seus neonazis de estimação são sua penúltima linha de defesa. A última, claro, é o Estado Policial, apesar de toda aquela baboseira que ele diz sobre amar a democracia.
Essa nostalgia eu tenho, de quando fascista tinha acesso limitado.
Arnaldo's crapbook
Meu caderninho de rascunho
Nessa seção falo de um filme (ou série, ou livro etc) que caiu bem e de outro filme (ou série, ou livro etc) que não bateu. Nem sempre vou tratar dos últimos lançamentos, principalmente no caso das coisas de que não gosto — porque o desagrado, assim como o Bolsonaro, precisa ser devidamente processado.
Terapia atrasada
Bateu: “Brats” (2024)
Sem nenhuma relação com o disco da Charli xcx, esse documentário meio mais ou menos de certa forma me cativou. Trata-se de uma terapia de grupo promovida a fórceps pelo ator Andrew McCarthy, um cara de sessenta anos que ainda não superou uma matéria da New York Magazine de 1985 chamando ele e alguns colegas de profissão que estavam surgindo na cena hollywoodiana de “Brat pack” (algo como “turma de pirralhos”).
Os colegas: Demi Moore, Rob Lowe, Emilio Estevez, Tom Cruise, Molly Ringwald — entre outros, todos estrelas de uma série de filmes que pela primeira vez na História do cinema botavam os dramas da juventude no centro da ação: “Clube dos cinco”, “O primeiro ano do resto de nossas vidas”, “A garota de rosa-shocking” etc.
O fato de que “Brat pack” é um trocadilho feito há quase quarenta anos em cima de um apelido ainda mais velho — “Rat pack”, como era chamada a gangue de festeiros que reunia Frank Sinatra, Dean Martin, Sammy Davis Junior e uma série de comparsas — mostra o quanto McCarthy levou para o terreno pessoal uma brincadeira inocente de um jornalista mais preocupado com o prazo de entrega do que com as angústias de um galã de 22 anos.
Para o ator tal rótulo, com sua conotação negativa — “brat” passa a ideia de alguém mimado, imaturo, para não ser levado a sério — foi uma espécie de maldição que contaminou a percepção do público em relação ao talento dramático do grupo, embora cada um de seus membros tenha experimentado graus diferentes de sucesso ou de decadência.
McCarthy então parte atrás de seus antigos parceiros de cena para perguntar sobre o impacto da matéria em suas carreiras, e fica perplexo quando a maioria deles não manifesta o mesmo recalque. No clímax do bagulho ele entrevista David Blum, o autor do artigo publicado em, repito, 1985. É quando o repórter se sente obrigado a explicar para o ainda atônito sessentão que jornalista e entrevistado não são amigos e que existem outros milhares de fatores que fazem uma trajetória artística definhar além de um adjetivo.
A carência de McCarthy fica explícita até nas escolhas da trilha sonora, como na inevitável “Don't You (Forget About Me)” dos Simple Minds, que ficou famosa em “Clube dos cinco” e sublinha seu trauma com o esquecimento; e em “Back in the high life again” de Steve Winwood, que toca quando ele entra no carro para começar seu périplo de visitas:
I'll be back in the high life again
All the doors I closed one time will open up again
I'll be back in the high life again
All the eyes that watched me once will smile and take me in
Para logo depois ser recebido com uma tremenda má vontade pelo Emilio Estevez, que não vê a hora de se livrar do visitante e de sua ideia meio estúpida para um documentário. A gente quase ouve o barulho da agulha arranhando o disco.
E acho que foi por isso que gostei de “Brats”: a sinceridade com que McCarthy se joga numa jornada de uma hora e meia para descobrir o óbvio é comovente. Depois de quarenta anos o cara pode dizer finalmente que está com a terapia em dia.
Não bateu: “Jogo bonito” (2024)
Nada contra esse filme cheio de boas intenções e que deve ter sido realizado para promover um evento real muito válido, a Copa do Mundo dos Sem Teto, apesar de fazer isso com personagens caricatos que parecem tirados daqueles sitcoms pra criança da Disney — mas a sessão me deixou pensando em como o cinema representa mal o futebol. Então vou deixar minhas impressões rasteiras sobre essa produção inglesa mais pro último parágrafo mesmo.
Primeiro, por exemplo: sabemos que não tem muito sentido fazer um filme de ação e economizar nas cenas de ação, mas aparentemente essa lógica não se aplica às produções sobre o assim chamado (nunca vi ninguém chamar assim) esporte bretão. Em “Jogo bonito” até há uma tentativa de trabalhar a dinâmica dos passes e dos dribles na sala de edição, mas muito tímida — é verdade que a trama é sobre amadores, o que nos deixa mais tolerantes com qualquer deficiência técnica, mas não a ponto de nos empolgarmos com o desenrolar das partidas.
A iniciativa de captar a essência do jogo com orçamento decente é mais bem representada pela franquia Goal!, que usa imagens de jogos e verdade liberados pela FIFA, inserindo personagens fictícios em times como o Newcastle e o Real Madrid. Nas o fato dos roteiristas serem obrigados a trabalhar em cima desses registros prévios — e de sua decisão de contar a história algo banal e requentada da ascensão de um aspirante —prejudicam o resultado. Fora que a tecnologia dos anos 00 entrega quais cenas foram filmadas diante de uma tela verde para ser trabalhadas na pós-produção.
O recorte desses filmes também costuma ser equivocado, geralmente apelando para a fórmula do time, técnico ou craque azarão que, através do treino árduo e do espírito de equipe, supera os favoritos — nada contra também, já escrevi um roteiro de longa-metragem com essa fórmula, mas quando esse tipo de projeto dá errado você é punido por dois pecados: o de usar o modelo e o de usar mal o modelo.
(Pensando aqui em Ted Lasso, que não é um filme mas uma série, e que não é sobre futebol, é sobre o tal do Ted Lasso — e também sobre quanto dá pra esticar um esquete em trinta e quatro episódios de cinquenta minutos)
Por isso não me espanta que o único filme que, entre todos que vi, chegou perto de traduzir a paixão que envolve o futebol, “Maldito Futebol Clube” tenha partido de uma premissa inusitada: os 44 dias da experiência fracassada do técnico Brian Clough à frente do Leeds United em 1974 — e contado essa história praticamente sem mostrar as partidas disputadas na tela. Ainda espero o dia em que uma história empolgante seja agraciada com um trabalho de câmera decente para tentar traduzir em imagens impactantes o desenrolar de uma partida. E espero que seja no meu filme hehe.
Ah, e sobre “Jogo bonito”: é um bem falho na sua tentativa de dar tratamento humano para indivíduos em situação de rua, principalmente por retratá-los como seres infantilizados para fins cômicos. Os dramas de cada um, descritos rapidamente e com tramas pouco elaboradas pelos autores também deixam a desejar. E tem o lance que eu falei das cenas de futebol. Valeu a intenção mas definitivamente não bateu.
Precisa assistir "Ela é o Cara"!