Even worse than the real thing
Mais uma semana perfeitamente normal no Brasil, onde um bilionário gringo comprou briga com nosso poder judiciário para poder manter sua rede social deficitária e com anunciantes em fuga como um safe space de nazista. É por isso que a gente não deve adotar programas de inteligência artificial para escrever ficção, as distopias boladas por humanos sempre são muito melhores. Imagina o pitching: Blade Runner, mas com jogo do tigrinho e discurso de coach.
E mesmo assim consegui escrever mais um número dessa bagaça, tapinhas aqui nas minhas próprias costas. Se você também reconhece meu esforço de guerra, assine a versão paga dessa newsletter (10 reais mensais, 100 anuais) ou compre meu livro:
Agora que fiz meu comercial, vou dar o menu desta décima segunda edição: falo do inevitável Elon Musk e sua defesa da democracia da Shopee, digo o que falou fundo em “Fúria primitiva” e o que me pareceu bem zicado em “Back to black”. E mais cartuns, opiniões e desespero. Quartou, meus bacanos.
Deixados para trás
Tem aquela clássica história dos caras na floresta que topam com um leão prestes a dar o bote e um deles começa a calçar um tênis de corrida. O outro chama atenção para o fato de que um tênis nunca vai fazer alguém correr mais rápido do que um leão e ouve a resposta: eu só preciso correr mais rápido do que você.
Esse também é a nota de corte de gente como o Elon Musk. Quando ele diz que está lutando pela liberdade de expressão enquanto mostra desprezo pela mesma liberdade sempre que as ditaduras que ele apoia pedem a cabeça de outros tuiteiros,* o cara está deixando a gente, que percebe a evidência do seu cinismo, para trás na sua corrida contra o leão. Ele não precisa nos convencer; só precisa persuadir os caras que já estão loucos para concordar com ele.
Musk segue a mesma lógica quando diz coisas flagrantemente estúpidas e facilmente refutáveis, tipo declarar que a Kamala Harris é comunista ou que o Brasil está sob o jugo de um governo autoritário. Claro que ele não acredita nesses absurdos de verdade; só precisa da adesão dos idiotas que acreditam.
Eu sempre tive pavor de parecer burro, e como sou inseguro até sobre coisas de que tenho certeza, quase nunca ouso dar palpites a fundo sobre assuntos que conheço apenas superficialmente — daí o caráter meio genérico de tudo que escrevo aqui, onde quase nunca me arrisco muito na seara das minúcias. Esse é exatamente o tipo de pudor que nenhum dono do mundo pode ser dar ao luxo de ter, e diria até que nascer sem o chip do medo do ridículo é um pré-requisito para poder ser dono do mundo.
Por isso nem fico muito revoltado com o cara — ele tá lá na sua estratégia de destruir o planeta e surfar os destroços, mas fico pra invadir aquário de redação com uma submetralhadora quando vejo analista político fingindo isenção e catando tecnicalidade para igualar as ações do Elon Musk e as decisões do ministro Alexandre de Moraes.
Se o Xandão está pecando não é pelo excesso, é pela falta; muitos desses sujeitos que ele exige que sejam banidos do ex-twitter já deveriam estar presos. Os colunistas da grande imprensa também sabem disso e só estão sendo linha auxiliar do bilionário, querendo atrapalhar a conversa e dar a impressão de que há erros dos dois lados.
Na verdade estão correndo ao lado do Musk, torcendo que a gente fique para trás e vire comida de leão.
* ou seja lá como se chamam os usuários daquela pocilga depois que mudou o nome
Arnaldo's crapbook
Meu caderninho de rascunho
Nessa seção falo de um filme (ou série, ou livro etc) que caiu bem e de outro filme (ou série, ou livro etc) que não bateu. Nem sempre vou tratar dos últimos lançamentos, principalmente no caso das coisas de que não gosto — porque o desagrado, assim como o Bolsonaro, precisa ser devidamente processado.
Fantasia de vingança
Bateu: “Monkey man” (2024)
Não sei se minha memória está me traindo mas creio que antigamente as sagas de vingança gastavam mais tempo estabelecendo as motivações do protagonista; hoje em dia parece que todos os filmes de ação querem se livrar logo da exposição do trauma incitante para entrar direto na porradaria com os inimigos. Pode ser efeito da geração TikTok, mas creio que algumas produções sofrem com esse hábito.
Não é o caso de “Fúria primitiva”, que parece tentar resolver a questão espalhando cenas das lembranças do herói vivido por Dev Patel (que também é o diretor) ao longo do filme — logo entendemos que sua mãe morreu nas mãos de autoridades hindus e que ele traz profundas cicatrizes, físicas inclusive, e quer matar geral para compensar a falta que faz sua progenitora.
O personagem, que aparece na ficha técnica apenas como “Kid”, se vira como sparring de lutadores mais populares em um ringue onde protege sua identidade com uma máscara de macaco, uma referência à divindade Hanuman, que é metade homem metade símio. Como atividade paralela descola um emprego de garçom para se infiltrar nas altas esferas e levar adiante sua desforra, mas toma na cabeça nas primeiras tentativas, apanhando, sendo esfaqueado e tomando tiro de um bando de vilões em tremenda superioridade numérica. Então o roteiro o conduz para um templo onde se reconecta com forças espirituais e volta mais preparado.
O grande diferencial é na mise-en-scène: o uso das locações na Indonésia, a paleta de cores quentes e as cenas de luta que passam a impressão de esforço físico extremo, algo que costuma faltar em outros filmes onde a sensação é de que o realismo da ação foi obtido mais na pós-produção do que durante a filmagem, mesmo em casos onde a coreografia da pancadaria é mais complexa.
E ainda tem uma pincelada de luta de classes, com o lutador-macaco ganhando ares de comandante revolucionário do proletariado contra as castas ditas superiores. Sempre é bom instigar no público suas próprias fantasias de vingança.
Fast forward
Não bateu: “Back to black” (2024)
Primeiro queria pedir desculpas por trapacear: eu sabia que “Back to black” (sobre a cantora Amy Winehouse) não ia bater desde o trailer e fui ver de propósito para escrever sobre o filme nesta seção. Em minha defesa assisti torcendo a cada frame pro bicho melhorar, e acho que vocês também poderiam encarar meu gesto como um sacrifício a que me submeti para trazer conteúdo pra vocês.
Cinebios são um animal delicado, e dependem muito do recorte escolhido. A opção clássica que segue o biografado do berço ao túmulo de cara apresenta o desafio de condensar uma vida em poucas horas, e geralmente cai vítima da necessidade de riscar todos os itens da lista dos momentos fundamentais do personagem em estudo. E a decisão de mostrar um período específico para resumir toda uma existência também pode ser problemática: é preciso que essa cápsula do tempo mostre inequivocamente do que o protagonista é (ou era) feito.
Não é a toa que o único diretor que gabaritou o gênero foi um dos maiores, Milos Forman (Amadeus, O povo contra Larry Flint, Sombras de Goya). Talvez o fato de ter começado a fazer cinema na antiga Tchecoeslováquia — portanto protegido pela cortina de ferro dos manuais sobre como criar narrativas tipicamente hollywoodianas — explique a força das suas incursões nesse tipo de material. Isso, e o fato de que ele não via problema nenhum em alterar acontecimentos reais em prol da história.
O curioso é que “Back to black” em tese apresenta um desafio mais simples, já que Amy Winehouse surgiu rápido na cena musical e morreu jovem, poupando o diretor do trabalho de resolver a equação anos de vida X minutos de tela — mas mesmo assim dá a impressão de um filme assistido com o fast forward acionado. E olha que não tem nem o clássico começo com uma cena de infância para mostrar um trauma ou indicar qual é o tema central, caímos dentro com ela já jovenzinha e prestes a tentar a sorte cantando.
Tem montagem pra tudo: pra carreira de Amy pegando tração, pra progressão de um affair, pras várias sessões de tatuagem. Talvez por esse desleixo narrativo, fatos conhecidos de sua vida que foram exaustivamente repisados e discutidos pelos tabloides dão a impressão de ser a criação de um ficcionista desleixado — e a espiral de decadência que foram seus últimos anos parecem uma escolha infeliz do roteirista (Matt Greenhalgh, de “Control", ótima cinebio do Ian Curtis) que não guarda muita coerência com o personagem que apresentou nos primeiro dois terços do filme.
Além disso “Back to black” imprime produção barata com seus planos fechados e cenas de aglomeração com evidente escassez de figurantes — bom, pelo menos tem a desculpa de que é a produção de um canal de TV. Talvez tenha sido feito mesmo para assistir em velocidade 2.
ser excêntrico (para dizer o mínimo) quando se é bilionário, é fácil… queria ver sendo clt. 😂😂😂
Alguns usuários de twitter (alguns em abstinência, outros em franca recuperação) continuaram usando o nome da plataforma quase como uma estratégia de resistência, uma tentativa de manter o espírito da rede. Falhou miseravelmente, mas foi bom enquanto durou. Tem um canal do youtube chamado Antídoto, onde o rapaz chama Musk de “o menor homem do mundo”, já que ele nada tem além de dinheiro.
Quanto a Back To Black, o jovem crítico PH Santos ficou tão pistola que fez não um, mas dois vídeos descascando o filme. Eu já esperava a bomba 🙃