Oblívio cômico
Chego na décima quinta edição da newsletter pensando se estou no caminho certo — era isso mesmo que eu queria dizer? Às vezes me sinto no meio de uma conversa onde esqueci o assunto — e agora que tenho um público considerável me observando é melhor fingir que estou conduzindo vocês na direção de um desfecho lógico. Fica, vai ter punchline.
Tudo bem, as nossas novelas funcionam assim: o meio da trama é pura enrolação com uns arremedos de acontecimentos. A gente tá acostumado com esse tipo de narrativa; me considere como uma história não muito inspirada do João Emanuel Carneiro. Vá lá, do Carlos Lombardi. Você percebe todos os furos no roteiro mas agora se comprometeu demais.
Falando em compromisso, lembro que a versão paga dessa newsletter, aquela em que você recebe o mesmo conteúdo mas se sente mais importante que a galera que lê isso aqui de graça, custa apenas dez reais por mês ou cem por ano. Faça isso por nós — pra você se sentir mais caridoso e eu me sentir menos pobre.
Nesse número falo sobre as vantagens de viver em uma bolha e acabo com a proposta original da coluna Bateu / não bateu escrevendo sobre duas coisas que eu gostei: o documentário “Um dos nossos” e o filme “Kneecap”. E mais os cartuns, que são meu jeito de encher linguiça — enquanto o do Carlos Lombardi é fazer o elenco masculino tirar a camisa. Cada um com suas habilidades.
Você aí na sua bolha
O debate de ideias na internet não costuma ser feito entre pessoas reais, e sim entre um sujeito que se diz livre pensador e os oponentes imaginários que ele inventou para vencer o debate. É como naquele tuíte clássico:
E um espantalho muito comum e bastante usado nessas ocasiões é o cara que vive dentro da bolha. Nos últimos dias ele foi muito invocado para tentar convencer as pessoas a voltar para o twitter, já que lá existe uma convivência forçada entre representantes de formas de pensar muito distintas, como facções rivais na cadeia, e quem se recusa a tomar parte nesse ato demencial está sendo considerado um covarde viciado em safe space.
O engraçado é que o sujeito que acusa os outros de viver em uma bolha geralmente precisa de credenciais para provar que ele não vive em outra, e para isso ele é obrigado a apelar para mais uma figura imaginária, que é o outro metafórico. Como ele — o aventureiro do livre pensamento — explorou o mundo, saiu de sua zona de conforto, botou o dedão no pulso do zeitgeist, agora se sente a vontade para falar em nome de todo mundo que nós, os pobres mortais daqui de dentro da bolha, ignoramos.
Bom, a verdade é que ninguém nunca passou procuração para qualquer um representar a maioria silenciosa; nenhum ser vivo pode declarar que está livre do campo gravitacional da sua própria câmara de eco.
O que torna o apelo ainda mais sem sentido é o uso do twitter como exemplo de lugar inevitável quando se trata de conduzir o debate público. Afinal não é segredo que a rede social do Elon Musk foi programada para privilegiar um determinado tipo de conteúdo e teve seus mecanismos de moderação completamente suprimidos — esse argumento é como defender um campeonato brasileiro só com jogos de ida e torcida única, no caso a adversária.
Vou mais longe e digo que a internet também não é exatamente o lugar ideal para esse tipo de confronto, já que o fator plateia faz com que os participantes se sintam mais tentados a dar cheque-mates verbais do que ganhar a discussão na base do argumento sólido. Todo mundo tende a ser mais razoável no presencial.
Tudo bem que não restam muitos de nós, os dinossauros que foram criados em um mundo sem a grande rede mundial dos computadores, então não somos exatamente o modelo ideal para basear as regras de conduta do século XXI. Mas o único paralelo que consigo traçar com essa campanha de retorno ao twitter é se nos anos noventa eu achasse uma boa ideia frequentar um bar de skinheads porque é importante entrar em contato com o contraditório.
Arnaldo's crapbook
Meu caderninho de rascunho
Nessa seção falo de um filme (ou série, ou livro etc) que caiu bem e de outro filme (ou série, ou livro etc) que não bateu. Nem sempre vou tratar dos últimos lançamentos, principalmente no caso das coisas de que não gosto — porque o desagrado, assim como o Bolsonaro, precisa ser devidamente processado.
Dessa vez vou falar de duas coisas que bateram! Aproveitem essa minha onda de bom humor:
Náusea capitalista
Bateu: “Wise Guy: David Chase and the Sopranos” (2024)
É curioso que a série que inaugurou a chamada Era de ouro da televisão seja na verdade uma elegia para um mundo agonizante: “tenho a sensação que eu cheguei no final” diz o bandido Tony para sua terapeuta Dra. Melfi no primeiro episódio de “Família Soprano”, nostálgico de um mundo de homens que — no seu entender — não precisavam de terapia, como Gary Cooper (o “tipo forte e silencioso”).
Para ele o dinheiro havia corrompido até algo que parecia inquebrável, a honra entre ladrões, e agora estava passando a vergonha de ser um chefe da máfia sofrendo de ataques de pânico. Com essa premissa, o criador David Chase queria mostrar que a frivolidade da experiência capitalista é capaz de enojar até um assassino. Sua criação entrou para a História e mudou a forma como se faz televisão para sempre.
Para sempre mesmo? O documentário “Um dos nossos: David Chase e a Família Soprano” deixa claro que as condições em que a série surgiu têm pouquíssimas chances de serem reproduzidas em um futuro próximo.
“Um dos nossos” não traz muita novidade para os fãs doentes (eu disputando os primeiros lugares da fila), mas descreve muito bem a jornada de Chase até receber sinal verde para um projeto que desafiava os padrões do que se considerava uma atração televisiva de sucesso — padrões que são bem parecidos com os que vigoram hoje, com os canais cada vez mais reféns da necessidade de dar lucro para seus acionistas e de fórmulas de consumo fácil.
Depois de “Família Soprano” vieram “A sete palmos”, “A escuta”, “Mad Men”, “Breaking Bad” e mais alguns representantes de uma safra que lembra a fase de liberdade artística de que Hollywood desfrutou quando os executivos dos grandes estúdios, dinossauros incapazes de entender o que queria a geração da contracultura no final dos anos sessenta, passaram o controle para diretores de cinema como Scorsese e Coppola.
Foi um lindo idílio que acabou quando esses mesmos executivos aprenderam como quebrar o código do desejo do público. Algo pior acontece agora: eles aprenderam a moldar esse desejo. Os assassinos seguem enojados.
Palavras como balas
Bateu também: “Kneecap” (2024)
Até assistir o trailer de “Kneecap” nunca tinha ouvido falar na banda homônima que protagoniza essa simpática cinebio — literalmente, os integrantes fazem o papel de si mesmos no filme. A estética pop e o estilo de vida hedonista do trio dão uma roupagem divertida à mensagem política e nacionalista — o país no caso é a Irlanda do Norte, a eterna pedra no sapato da Grã-Bretanha.
A trama começa quando o professor de música JJ é chamado na delegacia para servir de intérprete para um traficante de drogas que alega não saber falar o inglês da Rainha e só se comunica em gaélico irlandês. O garoto tem um caderno de rimas naquela língua proibida e o tradutor, beatmaker nas horas vagas, cresce o olho no potencial do detento como MC.
Esse é o evento — ou não é, a história tem pistas falsas como o próprio trailer confessa — que une no mesmo projeto musical Naoise (aka Móglaí Bap), Liam (Mo Chara) e JJ — ou DJ Próvaí, já que o professor precisa manter o anonimato com uma balaclava com as cores da Irlanda para poder continuar dando aulas.
A trajetória do grupo se complica porque Naoise e Chara continuam traficando drogas e pelo fato do primeiro ser filho de um guerrilheiro do Exército Republicano Irlandês que ainda continua circulando em Belfast apesar de ter simulado a própria morte dez anos antes. Os garotos fazem parte da chamada geração cessar-fogo, os nascidos depois dos acordos que minaram as ações do IRA (“a gente vai ser para sempre do movimento depois do movimento”) e se sentem em falta com a causa.
Mas o amor pelo gaélico vai unir o filho doidão e o pai revolucionário que acredita que “toda palavra falada em irlandês é uma bala disparada pela liberdade da pátria”. Apesar de marcados em cima pelas autoridades, o apelo da música fala mais alto — e precisa falar mesmo, já que a banda parece atrair chumbo de todo mundo: traficantes rivais, a polícia e até uma liga de rebeldes irlandeses anti-drogas. Tiocfaidh ár lá, get the Brits out, lad!
gosto muito da sessão Scrapbook!!
grande Arnaldo! Fernando aqui, nos encontramos brevemente em NY + de 10 anos atrás, num evento com os irmãos rodriguez.
Mas to aqui pra comentar duas coisas da (ótima, como sempre) nesletter. A 1a é que o fim do seu texto sobre bolhas é o mote de um ótimo especial de standup gringo desse ano - um judeu vai numa reunião de neonazistas lá no brooklyn. aliás, acabou de ganhar o emmy, faz pouco tempo. Se ainda não viu, recomendo. Longo, mas bem interessante, e lá pelo meio tem uma história sensacional sobre um natal judeu que o comediante viveu quando criança.
a outra é que comecei a ler sua 2a crítica do bateu, sobre o kneecap, e comecei a reconhecer os malucos. Fui num festival em portugal em julho pra ver outra banda que curto, e quando tava acabando dei uma passada na tenda eletrônica. Cabiam umas 2000 pessoas mas não tinha nem 50 pra ver o começo do show do kneecap. Fiquei pouco tempo, pq precisava pegar o ônibus antes de fechar a estação de trem, mas curti bastante do que tava vendo nos 20 minutos que fiquei. Foi engraçado também que eles não paravam de xingar a banda de pop-rap que tava tocando ao mesmo tempo no palco principal (e provavelmente roubando o público deles), haha.
valeu, keep on trucking