O enterro da democracia
Então teve a eleição municipal que, como todos os pleitos da era digital, foi mais um festival de más notícias. A eleição presidencial de 2022 pode ter marcado uma vitória épica e sofrida contra um adversário muito mais forte — mas diante do legislativo que assumiu junto com o Lula ficou um gosto de resultado mínimo na rodada final de uma luta contra o rebaixamento. E nessa última agora a gente nem teve a compensação de uma grande vitória redentora para minorar todas as derrotas. Essa festa da democracia virou um enterro.
Mas a luta continua e a cobrança do aluguel também e é por isso que além de entregar o conteúdo no prazo estou pedindo uma modesta contribuição mensal (10 mangos) ou anual (100 pratas) para que eu continue sendo esse resmungão que você adora, ou tolera.
Nesse número escrevo sobre como já passou da hora de pegar em armas mas adiantando que é pra vocês irem na minha frente; teço loas à série “Dois Rios” do podcast Rádio Escafandro e peço escusas em nome dos produtores de "Bob Marley: One love”. E tem ainda cartuns, mas ora vejam só como esse resmungão é pró-ativo. Aproveitem até a próxima eleição, se ela for convocada ou ainda tiver alguma utilidade.
Integridade física
Mal terminou a eleição pra prefeito e vereador e as redes sociais foram assaltadas pelo povo que sempre brota depois de mais uma derrota da esquerda recomendando caminhos que ela deve tomar para reencontrar as massas — geralmente soluções já sugeridas e algumas até já testadas com diferentes graus de fracasso. E como sempre logo depois surge a galera reclamando dessa aglomeração de palpite na timeline, cumprindo o ciclo do debate na internet até o próximo, que costuma surgir logo nas horas seguintes.
Aqueles que chegam com essas sugestões para a reinvenção da esquerda agora, nessa etapa do capitalismo predatório e no contexto do financiamento dos candidatos de extrema direita pelas grandes corporações ou pela máquina pública, geralmente apresentam fortes sinais de ingenuidade ou de adiantado estado de negação. A fase de ajustes possíveis dentro dos limites da democracia burguesa já foi há muito tempo, agora só resta aceitar as migalhas ou apelar para a violência.
Eu estou velho e coragem física nunca foi meu forte, então não vou ser hipócrita de ficar advogando a causa da luta armada porque numa possível revolução eu só cogitaria me alistar como cheerleader, mas basicamente é isso aí. E apesar de todo mundo gostar de posar de Power Ranger (“tem que dar cadeirada, botar no paredão, meter na guilhotina”) sei que não sou o único sujeito que pensa na minha integridade física antes da causa revolucionária.
Muita gente bota a recente imobilidade da esquerda na conta de um torpor causado pelo efeito rebote das manifestações de 2013. E é um pouco verdade, mas tem mais: não só a galera ficou escaldada com o lance da direita ter sequestrado uma manifestação legítima por transporte gratuito e transformado numa micareta fascista com direito a selfie com a polícia, mas também tem o fato de que depois disso todo mundo que foi para a rua com uma causa de verdade pra defender e não com um cartaz com um slogan genérico tipo “mãe deixei o quarto bagunçado pra arrumar o Brasil” apanhou que nem cachorro de açougue. Ato contra a reforma da previdência: eu fui, eu tava.
Não é só desmobilização, é amor pela própria arcada dentária. É sobre isso.
Arnaldo's crapbook
Meu caderninho de rascunho
Nessa seção falo de um filme (ou série, ou livro etc) que caiu bem e de outro filme (ou série, ou livro etc) que não bateu. Nem sempre vou tratar dos últimos lançamentos, principalmente no caso das coisas de que não gosto — porque o desagrado, assim como o Bolsonaro, precisa ser devidamente processado.
Segue o fio
Bateu: “Dois Rios” — Podcast Rádio Escafandro, episódios 120 a 123 (2024)
Entrei em um loop de podcasts gringos sobre roteiro e tirando o Calma Urgente — excelente tabela política entre Bruno Torturra, Alessandra Orofino e Gregório Duvivier, meus patrões no finado Greg News, que além de mandar bem demais me deixam nostálgico da época em que haviam empregos disponíveis no setor — ultimamente só ouvi quatro episódios de um podcast brasileiro que não é nenhuma novidade, o consagrado Rádio Escafandro. Mas que quatro episódios.
“Dois Rios” mostra uma investigação que partiu da dica de uma ouvinte que passou o carnaval em Ilha Grande, no litoral do Estado do Rio, e fez a trilha até a praia de Dois Rios, onde ficava o presídio de segurança máxima em que a mistura de detentos comuns com prisioneiros políticos do regime militar deu origem ao Comando Vermelho — história já contada em outros podcasts, séries e filmes. Mas o que chamou atenção da veranista foi uma reclamação do dono de um dos únicos bares da região: segundo ele, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), responsável pela administração da região depois da demolição do presídio, estaria em campanha para expulsar os moradores pobres da região.
Uma narrativa que começa instigando raiva na gente contra a diretoria de uma instituição de ensino aos poucos nos leva para outro lado, em um fio que chega até as maiores instâncias de poder no país e a interesses econômicos de operadores obscuros. Figuras com que simpatizamos a princípio ganham contornos vilanescos, pessoas com atitudes questionáveis se mostram o lado razoável da questão.
Não vou me estender para evitar spoilers mas é muito bom lembrar que a curiosidade jornalística pode partir de uma brasa dormida em forma de fato e achar uma trama que ajuda a explicar o Brasil.
Bob Marley catarinense
Não bateu: “Bob Marley: one love” (2024)
Bob Marley é um dos artistas que mais ganharam adesão de gente sem capacidade de interpretar letra de música, pelo menos aqui no Brasil — um defensor dos desfavorecidos adepto de uma religião que, não sem razão, fala dos brancos como agentes do mal, é adorado por surfistas loiros bem nascidos que reproduzem discurso meritocrático. Não estou generalizando, só descrevendo um tipo muito comum (morei em Florianópolis).
Pois “Bob Marley: one love” parece ter sido dirigido por um desses surfistas catarinenses. A trama começa no atentado que Marley sofreu em 1976, sabe-se lá porque, já que nunca chegamos a entender o contexto da disputa política na Jamaica que influenciou os atiradores, até sua morte, que foi naturalmente anticlimática: sofreu um ferimento no pé jogando futebol, desenvolveu um câncer, se recusou a tratar — e fim. Nesse meio tempo temos duas ou três falas mencionando genericamente liberdade e revolução e o resto fica por conta de suas composições que tocam incessantemente, como se estivéssemos em uma van a caminho de Garopaba.
Também vemos algumas idas e vindas para mostrar a vida pregressa do músico, mas em cenas sem unidade dramática: aqui está Bob indo no primeiro culto rastafari, aqui está ele gravando o primeiro disco, aqui está uma das várias DRs com a esposa Rita Marley por causa de um casamento mais ou menos aberto. Sem algum conhecimento anterior de sua vida e discografia é preciso fazer um certo exercício para encaixar as partes.
“One love” também prova que imersão é verba: pra gente entrar na realidade de um filme, valor de produção tem alguma importância. Os realizadores basicamente vestiram os atores com roupas de brechó, alugaram pouquíssimos automóveis dos anos setenta e mexeram nas cores pra dar uma saturada. As cenas com multidão são boas mas tudo é muito clean — parece a gravação de um comercial, onde há um acordo tácito: a gente tá mesmo mentindo pra você então não precisamos reproduzir o ambiente à perfeição.
As atuações são apenas OK, até porque são atrapalhadas pelo texto burocrático, mas pelo menos a prova de fogo do sotaque foi cumprida com louvor. Cinebio é realmente um gênero com muitas armadilhas, mas os criadores poderiam ter evitado cair em todas.
Reproduzindo também um dos chavões da internet: eu amo uma newsletter e desejo defendê-la de todo o mal 🙏🏽✨