Tempos esquisitos
Só porque a newsletter atrasou um dia inventaram um atentado contra o STF que podia ser um desenho animado da Looney Tunes. A maldição árabe “que você viva em tempos interessantes”, querendo dizer tempos onde não haja paz e toda hora aconteçam coisas terríveis não vale para os dias de hoje, onde o terrível anda de mãos dadas com o patético. São tempos esquisitos e olhe lá.
Falando em terrível minha situação financeira exige que eu lembre que você pode me ajudar a alcançar o sonho da newsletter paga por apenas 10 reais mensais ou 100 anuais. Serei eternamente grato — ou provisoriamente grato, se eventualmente você acabar cancelando a assinatura.
Nesse número falo sobre os textos falando sobre que a esquerda deve fazer, sugiro o podcast do Tarantino e repilo (falei igual ao Jânio Quadros agora) o filme “Reagan”, uma bomba mais potente do que aquelas que o ex-presidente norte-americano passou oito anos ameaçando jogar na nossa cabeça. E mais! Cartuns! (Examina os bolsos, volta a encarar a plateia) Só mais isso mesmo.
Esse trem já partiu
A pior parte dos textos estilo “o que esquerda precisa fazer” inspirados pela derrota nas eleições municipais e pela vitória do Trump nem é o tom professoral usado para sugerir soluções que já foram recomendadas e até testadas várias vezes — é que eles partem de uma lógica que não funciona mais no mundo de hoje. Vamos ao que a galera anda receitando:
Melhorar a comunicação
A gente vive na era da pós-verdade, onde coisas como apego aos fatos, mais do que um exercício de nostalgia, são um entrave na hora de se comunicar com os outros. A direita, que nunca pôde mesmo contar com a realidade para empurrar suas teses furadas agora descobriu que pode prescindir até da verossimilhança. É muito mais fácil cativar o eleitor falando em operação de mudança de sexo nas escolas do que em propostas de verdade, como renda básica.
Além de ser proprietário das redes sociais, onde os mecanismos de mediação e verificação dos fatos foram abolidos, o capital comprou a imprensa tradicional, que não precisa mais nem fingir o mínimo de imparcialidade. O episódio em que o Jeff Bezos impediu seu jornal, o outrora respeitado Washington Post, de declarar apoio à candidata democrata, mostram que a credibilidade é um ativo desvalorizado e até desnecessário no jornalismo moderno. Antes protagonista do ecossistema da informação agora a mídia corporativa é uma mera câmara de eco.
Uma alternativa mais realista pra esquerda é mentir também, na mesma proporção e intensidade. O debate político virou um jogo de truco, tem pouco espaço de manobra fora da mesa e a má notícia é que eles tem mais cacife.
Voltar para a base
Depois que convenceram boa parte da população que pobreza e prosperidade são estados de espírito não tem muita base pra onde voltar — a não ser que se faça uma lavagem cerebral reversa que vai custar fortunas e exigir uma capacidade de atuação que por enquanto só o adversário possui, problema já abordado no item “melhorar a comunicação”.
Sem uma classe trabalhadora que se reconheça como tal a esquerda vai continuar falando sozinha — ou pior, brigando sozinha.
Ir pra rua
Não sei se a galera percebeu, mas a gente vive em um estado policial que nas últimas décadas desceu o cacete em todas as manifestações que tinham pauta de verdade e não gente de verde amarelo tirando selfie com a tropa de choque. A falta de mobilização não é só melindre do PT, é instinto de sobrevivência. E nas poucas vezes que conseguimos ir pra rua sem voltar com cheiro de gás lacrimogênio (Ele não, Fora Bolsonaro) tomamos um choque de realidade — mesmo quando conseguimos nos organizar aprendemos que o sistema está tão blindado que pode mandar um “valeu, recado anotado” e seguir funcionando do mesmo jeito.
No moment há uma grande manifestação marcada pelo fim da escala 6 X 1, uma pauta importante e urgente, mas o provável sucesso do ato faz lembrar de todas as reivindicações que também precisam de uma movimentação parecida, seja pela revogação de todos os itens da reforma trabalhista e da previdência, quanto pelo fim da chantagem do congresso via orçamento secreto e da impunidade dos golpistas. Estamos firmemente agarrados a uma única boia de salvamento em um oceano de merda.
A esquerda precisa de muitas coisas, mas no contexto do capitalismo tardio boa parte delas são mais inviáveis do que as utopias mais delirantes. Se é mesmo mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo talvez seja melhor a gente considerar a solução mais difícil.
Arnaldo's crapbook
Meu caderninho de rascunho
Troca de gentilezas
O Bruno Natal indicou minha news na news dele com um texto mó legal e agora retribuo a gentileza. O Bruno é fera e está com a galera:
A newsletter O Futuro Explicado é editada pelo jornalista Bruno Natal, apresentador do podcast RESUMIDO, em que fala sobre cultura digital e o impacto da tecnologia em todos os aspectos das nossas vidas. Semanalmente, Bruno faz uma análise das principais notícias sobre inteligência artificial, plataformas de rede social, big tech e comportamento online. Tudo de maneira condensada, ideal para quem quer se manter atualizado sobre as transformações tecnológicas que vivemos. Clique aqui para se inscrever.
Nessa seção falo de um filme (ou série, ou livro etc) que caiu bem e de outro filme (ou série, ou livro etc) que não bateu. Nem sempre vou tratar dos últimos lançamentos, principalmente no caso das coisas de que não gosto — porque o desagrado, assim como o Bolsonaro, precisa ser devidamente processado.
Verborragia interessante
Bateu: “Star 80” — episódio 109 do Podcast Video Archives (2024)
Não entendo muito os critérios de cancelamento vigentes. Um amigo que que adora filmes de terror e assassinato em série onde mulheres nuas são meticulosamente desmembradas já fez a acusação — bastante difundida, aliás — de que o Quentin Tarantino só virou diretor de cinema para filmar cenas que satisfaçam seu fetiche por pés. Tem todo um segmento nas minhas redes sociais com militantes indignados tirando o cara pra medíocre e taradão.
Acho Tarantino um grande diretor e curto seu enciclopédico e obsessivo interesse por cinema, que ele demonstra através de uma torrente interminável de palavras — um dos motivos pelos quais geral acha ele chato, como é o caso da Fiona Apple:
O que é uma declaração e tanto pra quem já namorou o mágico David Blane e o Louis CK. Diferente da Fiona, eu toparia ficar ouvindo o papo cheirado dos dois, mas talvez seja porque eu não estou precisando me curar do vício em cocaína.
Toda essa introdução é pra dizer que só agora descobri Video Archives, o podcast que o Tarantino tem com o Roger Avery, seu colega de escrita no roteiro de Pulp Fiction e dos tempos em que eram balconistas de locadora; e com a filha de Avery, Gala. Entre vários episódios em que destrincham filmes (geralmente três de cada vez) escolhi esse que é só sobre “Star 80”, produção de Bob Fosse com Margaux Hemingway e Eric Roberts e que trata do homicídio da atriz Dorothy Stratten por seu marido, um caso real que lançou luz sobre o caráter exploratório da indústria do entretenimento com relação à beleza feminina — e onde Fosse dobrou a aposta tomando o ponto de vista do assassino poucos anos depois do ocorrido.
Uma conversa bem interessante sobre as implicações éticas de tomar liberdade com o relato de tragédias reais, sobre linguagem visual usada em benefício de uma tese e sobre como manipular o público para fazer sua simpatia mudar de um personagem para o outro. Mas sugiro qualquer outro episódio, sempre descubro coisas novas, geralmente sobre filmes que nunca vi nem sei se vou encontrar onde ver um dia.
Por mim o cara pode continuar fazer cinema como pretexto para exercer sua podolatria — consensual, é lógico — se os filmes e o papo sobre cinema continuarem bons.
Excepcionalmente ruim
Não bateu: “Reagan” (2024)
Mais um filme que vi de propósito pra não gostar e que me deixaria muito decepcionado se eu achasse minimamente tolerável. Sei que essa não é um atitude aconselhável para um crítico de cinema e ainda bem que eu não sou um. Só que “Reagan” conseguiu superar minhas expectativas em relação à sua ruindade — seria possível fazer uma série de ensaios interessantes sobre o ex-presidente norte-americano Ronald Reagan, mas esse definitivamente não é um deles.
Reagan é aquilo que o trailer promete: um conto de fadas que serve pra embalar sono de conservador idoso com a memória afetiva embotada por alguma doença degenerativa. A biografia enfadonha de um cara que nunca sofreu muitos revezes na vida porque sempre esteve ao lado dos poderosos da pior maneira possível: foi informante do FBI, fura greve contumaz quando era presidente do sindicato dos atores e testemunha amigável do comitê de atividades antiamericanas.
Talvez por isso “Reagan” comece com o atentado que ele sofreu em 1981, pra fazer a galera criar a expectativa de que sua vida teve outros momentos emocionantes — no filme o maior deles se dá quando há um alarme falso de ataque nuclear e a participação direta do Reagan ainda por cima é inventada — ou pelo menos outras tentativas de assassinato. Não que ele não tenha merecido, seja por ter ajudado a agravar a epidemia de AIDS ou pela sua participação na escalada de mortes na guerra civil salvadorenha, dois assuntos tratados no filme como delírios de alguns manifestantes inconvenientes. Não à toa o cara era o vilão estampado na capa de todo disco de punk rock que preste dos anos 80.
Mas o pior de tudo é o dispositivo de narração escolhido pelos autores: quem conta a história é um burocrata da KGB tão fã do biografado que guarda uma cópia do primeiro livrinho que ele leu na vida. Sua tese é que o Reagan sozinho derrubou a União Soviética e já planejava fazer isso desde que era galã de filme B. Além dessa premissa idiota temos que aturar o horroroso rejuvenescimento artificial feito na base de maquiagem pesada e de CGI obsoleto dos personagens do burocrata (Jon Voight) e do ex-presidente (Dennis Quaid), dois republicanos de carteirinha que na hora em que concordaram em participar disso aqui jogaram pro alto o critério artístico em prol da ideologia.
É um filme que tal qual “Oppenheimer” só podia ter sido realizado por gente que acredita no tal do excepcionalismo americano — de outra forma tinha tudo pra virar uma comédia alegórica estilo Doutor Fantástico. Quero ver como é que os gringos vão continuar fazendo peças de propaganda desse tipo depois de eleger o Trump duas vezes.
E é claro que vão, o mito depende de doses iguais de ingenuidade e cinismo, que são os pilares do patriotismo exacerbado.
Valeu pela dica do podcast do Tarantino.
Newsletter recheada de lição de casa, achei tendência...rs. Ligeiramente surpresa pela participação especial do jovem Ian Neves, que eu acompanho e respeito bastante. Pergunta de curiosidade sincera: o link do livro do Mark Fisher na amazon é um daqueles links de afiliado, que a pessoa ganha uma porcentagem se alguém comprar nele? Porque eu tenho um pdf que eu achei caído de um caminhão (ehehe) , mas às vezes uma versão física cai bem =)