Absolute rotina
Quando eu era moleque fiquei marcado pelas imagens do atentado contra o presidente do Egito, Anwar Sadat. Foi um enredo de Hollywood, com os assassinos da Jihad Islâmica se infiltrando na parada militar que comemorava a conquista do Canal de Suez, pulando dos caminhões na hora em que eles passaram em frente à tribuna de honra e abrindo fogo na direção de Sadat e de outros pobres desavisados na plateia. Absolute cinema.
O principal motivo desse acontecimento reverberar tanto em minha cabecinha infantil foi porque tive vários meses para processar a cena, já que nada tão espetacular aconteceu no mundo nos meses seguintes. E olha que aquele ano (1981) teve outras tentativas de assassinato importantes em março e maio: respectivamente, do presidente norte-americano Ronald Reagan e do Papa João Paulo II — que foram mal sucedidas e bem menos cinematográficas.
Escrevo isso no período de uma semana em que um delator do PCC foi morto no aeroporto de Guarulhos, um maluco se explodiu em frente ao STF e a Polícia Federal descobriu uma trama para matar Lula, Xandão e o pobre do Alckmin, que mal virou comunista e já é alvo em potencial de militares tresloucados — e eu só tô falando do noticiário nacional, sem mencionar coisas como o primeiro ataque da Ucrânia à Rússia com mísseis dos EUA.
Diferente de quando eu era criança, agora não temos tempo de digerir mais nada. Saudade daquele mundo um tanto quanto cinema francês do passado, com suas pausas pra contemplação. Hoje em dia a somos figurantes sem seguro de vida numa produção da Marvel com direção do Michael Bay.
Dito isso, faço de novo aquele pedido maroto pra que você, leitor querido, assine a versão paga dessa newsletter (R$ 10 mensal, R100 anual) e me ajude a lidar com a ansiedade causada por apenas estar vivo nessa quadra da História.
E finalmente, o menu: nessa edição falo do xingamento insuficiente da Janja para o Elon Musk, exalto as qualidades do livro “Os Supridores” do José Falero e lamento minha incompatibilidade com o filme “Dumb money”. E no mais: cartuns com as catástrofes rotineiras desta semana. Aproveite e até breve, se a próxima vítima fatal dos acontecimentos a seguir não for eu ou você, leitor.
Janja pegou leve
O famigerado José Sarney, até o fechamento dessa edição ainda um ser vivente, cunhou nos anos oitenta a expressão “liturgia do cargo” para designar a conduta sóbria que um presidente da república deveria adotar para parecer mais, digamos, presidencial. É claro que o termo pode ser considerado inválido só por ter sido cunhado pelo Sarney, que foi um dos caras menos presidenciais que ocupou a presidência — tanto é que passou seu mandato inteiro chorando porque um telefonema do Ulysses Guimarães valia mais do que um decreto seu.
Mas a imprensa adotou o termo como uma espécie de regra não-escrita, e soava o alarme quando, no seu entender, algum mandatário da nação rompia esse pacto de elegância — todas as vezes nos governos do PT, claro. É só lembrar o artigo indignado que a Danuza Leão escreveu quando o Lula comemorou suas bodas de pérola com Dona Marisa numa festa junina — que nem foi a coisa mais arrombada que ela digitou na vida, principalmente quando a gente lembra da coluna onde afirmou que não tinha mais graça fazer viagem internacional porque um reles porteiro estava conseguindo fazer também.
Só que aí o Brasil elegeu o Bolsonaro, que não satisfeito em violar várias vezes o código penal também não ia muito bem no tocante ao manual de boas maneiras da Socila. Depois de umas tentativas desajeitadas de dizer que ele estava se emendando, o pessoal resolveu deixar pra lá e assumir que aquele era o jeitinho dele mesmo, né? Fazer o que?
E foi assim que mesmo depois que 1) o cara usou o discurso dos 200 anos de independência para enaltecer o próprio pau 2) comeu frango com farofa usando sua virilha de bandeja e 3) descobriram que a primeira dama matou carpas doadas pelo Imperador do Japão porque drenou o espelho d’água do Palácio da Alvorada pra catar as moedas que os visitantes costumam jogar lá, você não ouviu a expressão “liturgia do cargo”.
Mas assim que Lula subiu a rampa ela voltou com força total, e ninguém foi mais acusada de pisar fora de sua linha imaginária do que a Janja — me pergunto se o fato desse país ser misógino pra caralho, ainda mais com mulheres de personalidade forte, tenha algo a ver com isso. Depois de implicar até com a compra de uma coleira da Zee Dog para a cadela Resistência (140 reais em quiosque de shopping), a imprensa agora está tirando as calcinhas pelo cabeça porque ela mandou um “fuck you” pro Elon Musk.
Bom, concordo que foi meio fora de hora mas se tem um cara que realmente merece se foder é o bilionário que precisa de cada centavo de sua fortuna pra compensar o que lhe falta em beleza, carisma e autoestima — quem mais cobraria sua equipe de desenvolvedores porque as piadas que publica na sua própria rede social são um fracasso de público?
O capitalismo não consegue mais esconder que é apenas um sistema de transferência de renda dos mais pobres para os cada vez mais ricos, onde a conversinha sobre oportunidades iguais só engana os iludidos ou os aspirantes a opressor — que também são uns iludidos. Pior, virou um culto suicida em que pessoas com muito poder sobre as nossas vidas ignoram ou fingem ignorar ameaças evidentes ao planeta, negando as mudanças climáticas, questionando a eficácia de vacinas, incentivando o ódio pelo diferente — tudo isso em nome de uma agenda neomalthusiana dodói que faz a cena da reunião final na sala de guerra de “Dr. Fantástico” parecer uma aula de sensatez.
Há muito tempo a existência de bilionários deixou de ser uma suposta anomalia em um processo disfuncional e virou um caso evidente de ou nós ou eles. Não é mais suficiente que o Elon Musk se foda, o ideal é que ele morra. Janja pegou leve.
Arnaldo's crapbook
Meu caderninho de rascunho
Nessa seção falo de um filme (ou série, ou livro etc) que caiu bem e de outro filme (ou série, ou livro etc) que não bateu. Nem sempre vou tratar dos últimos lançamentos, principalmente no caso das coisas de que não gosto — porque o desagrado, assim como o Bolsonaro, precisa ser devidamente processado.
Empreendedorismo de verdade
Bateu: “Os Supridores” — José Falero (2020)
No segmento “bateu” falo com atraso de um livro que já foi lançado há alguns anos e que nem li recentemente — na real devorei em janeiro, mas peguei pra folhear novamente depois que o Ronaldo Bressane, da essencial “Invenções de Morel”, me perguntou qual tinha sido a minha melhor leitura do ano. Mas talvez nem tenha sido a melhor porque “Os Supridores” me levou a catar outras obras do Falero e todas merecem o título.
Os supridores do título são Pedro e Marques, responsáveis pela reposição de estoque de um supermercado de Porto Alegre e que enfrentam a vida dura de quem não tira sabático nem faz self care. Mas Pedro tem um trunfo: consciência de classe, que ele usa para convencer Marques a entrar com ele num esquema de venda de maconha com divisão igual de lucros entre todos os envolvidos — à medida em que o negócio prospera, cada vez mais gente.
José Falero conta essa história esbanjando sua linguagem de gírias de quem faz uso na vida real e não pesquisa no google, com um estranho tom de conto de fadas marginal, imprimindo um ritmo e uma graça que só encontrei antes em outros grandes, como Antônio Fraga e João Antônio. Tem peso de literatura e gosto de cinema — pelo que entendi já compraram os direitos para a tela e espero que façam uma adaptação decente, o que deve ser um trabalho fácil: Falero já preparou o terreno com maestria. O capítulo / cena do tiroteio me obrigou a parar a leitura algumas vezes de tanta ansiedade.
Uma história de empreendedorismo escrita para zoar a noção de empreendedorismo difundida pelos exploradores da precarização da força de trabalho, “Os Supridores” nasceu clássico — embora tenha certeza que seu autor não está preocupado com a posteridade. Seu interesse pelo agora é o que dá vida aos personagens e para a trama, que fica na cabeça do leitor meses depois da imersão no livro, como posso atestar nessa resenha.
Ganhos mínimos
Não bateu: “Dumb money” (2023)
De novo fazendo a ressalva: o “não bateu” no título dessa seção não quer dizer que o objeto da crítica é indubitavelmente ruim ou mesmo que não é capaz de entreter ou comover; tem mais a ver com minha incapacidade totalmente pessoal e intransferível de engajar com a obra. “Dumb money” é o tipo de filme que eu indicaria sem medo pros clientes da locadora onde eu era balconista, mas não botaria na minha lista “ver de novo dia desses”.
Por que? Bem, vamos ao enredo: “Dumb money” é sobre o caso real GameStop, uma franquia varejista de videogames que foi alvo de uma ação predatória de investidores de Wall Street — uma forma de ganhar dinheiro com a miséria dos outros, meio que a versão moderna de apostar no leão contra os cristãos na arena — e acabou salva pela ação coordenada de pequenos investidores lideradas por um streamer nerd chamado Keith “Roaring Kitty” Gill (Paul Dano).
O “dinheiro burro” do título se refere justamente a esses operadores de pequenas quantias que não tem o mesmo acesso à informações privilegiadas que os tubarões da Bolsa, e acabam tendo ganhos mínimos ou mesmo nenhum. O GameStop foi uma das poucas ocasiões em que esses azarões não só faturaram alto como também causaram sérios prejuízos para os investidores graúdos — como o personagem do Seth Rogen, Gabe Plotkin, que teve perdas na casa dos bilhões.
O que me tirou um pouco da frequência do filme é o fato dos roteiristas adotarem a narrativa Davi X Golias, com um protagonista que parece propositalmente despido de carisma para ressaltar sua insignificância diante dos adversários poderosos e que não é nada além de um bom coração — seu único objetivo é sustentar a família, mesmo que se recuse a embolsar lucros milionários para manter acesa a esperança de salvar sua querida lojinha de games. A gente fica pensando o que um cara desses tá fazendo no ramo da especulação financeira — nanica, mas nem por isso menos especulação.
Além disso, o roteiro também acompanha a rotina de outros pequenos investidores com histórias que não tem nenhum ponto de contato além do fato de serem espectadores das lives de Gill — sabe-se lá por que, já que não chegamos a nos envolver com seus dramas a ponto de nos interessar pelo desfecho. Temos então personagens que são meros cheerleaders desse Robin Hood moderno, cujo maior dilema durante todo filme é: clico nesse botão na tela do celular para vender minhas ações?
Paul Dano sempre defende qualquer papel com dignidade e o resto de elenco está bem. Mas pra mim assistir esse filme foi um investimento com ganhos mínimos.
Gostei muito desse livro do Faleiros também, mas não tinha visto a capa gringa.
E eu tenho visto muito do cinema americano nesse imaginário de exaltar criador do Bluetooth, do Tetris, do McDonald’s, como gênios incontestáveis. Deve ter a ver com o crescimento de outras potências e com o apequenamento de pau dos americanos na atualidade. E com o quico do foguete também. Ewww
81 foi também o ano do Riocentro; naquela época ainda tinha muito terrorismo ativo pelo ocidente e periferias. Só não me lembro de minuta de golpe e plano de assassinato impressos, com a exceção de desenho do Papa-Léguas.