Desconforto nas Forças Armadas
Nota: foi mal pelo novo atraso (de um dia) dessa newsletter. Tô pensando em mudar o nome dela para Semana praticamente encerrada — mais praticamente encerrada ainda
Às vezes gostaria de ser um general da reserva e ter uma equipe composta só de repórter pau-mandado à disposição para publicar indiretas na imprensa. “Arnaldo manifesta insatisfação a grupo de amigos com produtora que atrasou pagamento”, “Arnaldo tem mal estar em evento com presença de arrombado que o demitiu dez anos atrás”. Me pouparia o trabalho de escrever eu mesmo aqui na minha news.
Sendo assim, digo que sinto um certo desconforto com meu número de assinantes pagos. Fontes próximas afirmam que não custa nada (além de dez reais mensais ou cem anuais) prestigiar o esforço de um roteirista / cartunista que ultimamente vem exercendo essas funções de graça ou por pagamentos simbólicos.
Nesse número imagino como seria o diário de um golpista, festejo o (como se chama um conteúdo da Audible que não é um audiobook, audiocast?) “Chumbo & Soul” e lamento “O Aprendiz”, a cinebio do Trump. E mais meus cartuns fresquinhos porém com prazo de validade — pois são obrigados a comentar o mais novo ciclo de desgraças que assolam a nação.
Trama palaciana
A descoberta de um esquema para matar a tiros Xandão e Alckmin e envenenar o Lula — por que, meu Deus, eles queriam que a gente achasse que o presidente morreu de causas naturais no mesmo período em que um ministro do Supremo e o vice-presidente foram assassinados? — deixou todo mundo estarrecido com o amadorismo dos golpistas. Não que a gente contasse com a inteligência deles, mas a extensão da burrice ainda não tinha sido devidamente mapeada.
Os caras não só botaram no papel detalhes do plano como usaram a impressora do Palácio do Planalto para fazer cópias, certamente achando que aquela geringonça funciona como um mimeógrafo.
No fim das coisas o episódio meio que humanizou os aspirantes a assassino — a gente descobriu que os caras são gente como a gente, que curte planejar as coisas mas que na hora de executar fica procrastinando. Resolvi fazer um exercício de imaginação sobre como seria o diário de um desses sujeitos:
01/11/2022
Lula foi declarado vencedor pelo TSE, que a gente deixou agir livremente apesar de sua evidente intenção de impedir nossa interferência no resultado das eleições. O fato de que o parecer desse órgão corrupto foi corroborado pelo STF, pela Anistia Internacional, a OEA, a ONU, o presidente dos Estados Unidos e todos os países do mundo é só um detalhe, precisamos agir para impedir a posse do nove dedos. É verdade que um golpe sem apoio das grandes potências nos tornaria párias internacionais, o que a gente já é de certa forma por causa do governo Bolsonaro, então tudo bem.
02/11/2022
Quem se importa com resultado de eleições quando se tem o povo? Linda a movimentação de patriotas nas estradas impedindo a passagem de veículos, inclusive em cidades onde ninguém nunca teve nenhuma intenção de passar. Achei a média etária um pouco preocupante, um golpe de estado envolve alguma atividade física e talvez tenhamos baixas com tanto idoso pegando friagem nas barracas, mas é impossível fazer uma revolução sem baixas.
12/12/2022
Depredamos Brasília hoje, no dia da diplomação do Luladrão. Tudo bem que a cerimônia foi de manhã, mas fica muito mais legal botar fogo em um ônibus de noite. E depois esse negócio de diploma é bobagem, tá cheio de diplomado fazendo Uber, o negócio é impedir a posse. Depois teve reunião na casa do Braga Netto, onde falamos informalmente sobre matar o presidente eleito, coisa que quase tenho certeza de que não constitui crime. E parece que tá circulando uma minuta do golpe — isso é que é planejamento, a cúpula pensa em tudo — que eu ainda não vi mas vi a maior galera tá comentando no twitter que é top.
15/12/2022
Hoje tivemos que abortar o sequestro e morte do Xandão porque a sessão no STF acabou mais cedo e um colega não conseguiu descolar um táxi, coisas normais que acontecem em um golpe de estado, que não é um passeio no parque não. É um passeio no parque onde às vezes você não consegue descolar um táxi. Já-já a gente tenta de novo, dessa vez combinando a corrida com o taxista de antemão, é bom que a gente evita a tarifa dinâmica.
22/12/2022
Hoje era o dia de tentar de novo mas o Xandão viajou pra São Paulo e só volta pra posse. Kkkkk mal sabe ele que não vai ter posse.
01/01/2023
Teve posse, como eu disse é difícil trabalhar com idoso, o deslocamento leva muito mais tempo. Mas semana que vem deve estar todo mundo em Brasília pra quebrar tudo e fazer o burro do Lula cair na armadilha e convocar a GLO.
08/01/2023
Lula não convocou a GLO mas a manifestação foi bonita. Fui preso porque entrei junto com os coroas para dar orientação tática e minha carteirada não funcionou muito bem depois que eu ajudei a espancar um PM do Distrito. Mas tenho fé que vão me tirar daqui logo.
23/11/2024
Meu pedido de habeas corpus foi negado de novo. Meu advogado ligou dizendo que fui indiciado outra vez e que meu nome apareceu na TV. É essa maldita ditadura do STF.
Arnaldo's crapbook
Meu caderninho de rascunho
Nessa seção falo de um filme (ou série, ou livro etc) que caiu bem e de outro filme (ou série, ou livro etc) que não bateu. Nem sempre vou tratar dos últimos lançamentos, principalmente no caso das coisas de que não gosto — porque o desagrado, assim como o Bolsonaro, precisa ser devidamente processado.
Compensando o silêncio
Bateu: “Chumbo & Soul” — original Audible (2024)
Nos anos noventa / início dos anos 2000 eram comuns — pelo menos no Rio de Janeiro — revistas policiais sistemáticas nos ônibus. Os caras entravam pela porta da frente e mandavam qualquer um que considerassem suspeito levantar do banco e erguer os braços para ser apalpados. Invariavelmente escolhiam todos os negros que estivessem no veiculo, e isso só acabou quando a PM decidiu parar com a rotina, que além de racista era inútil.
A ditadura militar já havia acabado há anos mas seus procedimentos ainda valiam para uma grande parcela da população. Imagina como não foi durante sua vigência? O documento sonoro em capítulos (não sei se pode chamar de podcast porque é um conteúdo da Audible, que totalmente tá valendo a assinatura) “Chumbo & Soul” fala sobre essa lacuna dos livros de História — pelo viés da música negra. E é espetacular.
Gilberto Porcidônio parte da saga de alguns membros da sua família entre casas desapropriadas e passagens por serviços de assistência ao menor — muitas vezes uma forma de separar empregadas domésticas dos filhos para a conveniência dos patrões — e mostra que os anos de chumbo foram ainda mais pesados pra quem não frequentava os bares da esquerda festiva.
Aliás boa parte da esquerda fica mal na fita, muitas vezes tratando a luta contra o racismo como uma pauta importada ou adiável. Sobra pra gente como Aldir Blanc e Big Boy, um DJ branco que sempre foi tratado como um dos heróis da música soul no Brasil embora esta constituísse apenas um segmento dos seus sets — quando os bailes comandados por negros começaram a fazer concorrência ele correu para abraçar a tese do racismo reverso.
Nos emocionamos várias vezes com os depoimentos de quem se apoiou na música para navegar aquele período tenebroso, como Macau, o compositor de “Olhos coloridos” e Dom Filó, agitador cultural que ao ser levado levado para o Dops sob a acusação de comandar um exército de revolucionários, dobrou a aposta e confirmou, reiterando que essa cavalaria iria entrar em ação na eventualidade do seu desaparecimento. Foi solto rapidinho.
Ouça alto, pra compensar o silêncio.
Alerta tardio
Não bateu: “O aprendiz” (2024)
Não se deixe levar por mim (que aviso desnecessário, nem os meus cachorros se deixam levar por mim): o fato de “O Aprendiz” estar na seção “Não bateu” não significa que o filme não valha o preço da sessão. Talvez a ressaca de ter sido lançado vésperas da nova eleição de seu biografado, o presidente Donald Trump (que sequência de palavras), tenha azedado minha experiência — pra mim ficou com cara de um alerta tardio e ainda por cima ineficaz.
O filme é interessante quando acompanha Trump engatinhando na sua carreira de escroque, aprendendo os truques da pilantragem com Roy Cohn, o advogado de luxo que empregava métodos dos seus colegas de porta de cadeia para vencer seus casos, intimidando promotores, juízes e testemunhas com dossiês cheios de fotos e gravações de flagrantes desabonadores. O trabalho de Cohn foi fundamental para possibilitar o enriquecimento daquele herdeiro do ramo imobiliário com seu projeto de gentrificar a Nova York em ruínas dos anos 70, enchendo a cidade de torres cafonas que fizeram sucesso com os novos ricos da era yuppie.
Sem as mutretas do advogado, um gay de armário que não tinha pudor em expor a intimidade de adversários com a mesma orientação sexual, Trump teria que pagar impostos que impossibilitariam seus planos, além de bancar um processo milionário por cobrar mais caro de inquilinos negros nos prédios pertencentes a sua família. Cohn deixou a pista livre para o surgimento do 171 de fala infantil que a gente conhece.
A melhor coisa de “O Aprendiz” são as atuações, principalmente nesse terço inicial. Sebastian Stan (sempre excelente e versátil) interpreta um Trump dois tons abaixo, com seus tiques com as mãos e a mania de repetir palavras para enfatizar coisas que o interlocutor já entendeu na primeira enunciação, mas sem a voz projetada que o presidente dos Estados Unidos usa em seus comícios. Além disso, Stan repete um cacoete que Trump deve ter perdido depois que seu topete ficou ralo e ingovernável, passando a mão toda hora naquela nuvem de cabelo que ele chama de cabelo. Jeremy Strong faz um Cohn que é ao mesmo tempo fiel ao original e uma total invenção sua e Maria Bakalova como Ivana Trump consegue ser imponente e vítima com a mesma convicção.
“O Aprendiz” perde potência quando a relação de forças entre Trump e Cohn começa a se inverter: o pupilo passa a agir de forma ainda mais agressiva do que seu professor, apostando além de sua capacidade financeira e dos limites dos conselhos do advogado, e Cohn definha quando é pego pela epidemia de AIDS que assolou a comunidade gay durante a administração Reagan. É aí que Trump começa a parecer a caricatura ambulante que conhecemos hoje, mas ainda sem o grau de letalidade que atingiu ao chegar à presidência.
Essa comparação meio que empalidece a sordidez do biografado: depois de ver o candidato Trump falando sobre haitianos como sub-humanos na campanha o racismo do Trump do ramo imobiliário parece quase inocente.
Mas também rola um efeito inverso. Perto do final, quando Trump conta para seu biógrafo suas três regras para vencer na vida — que ele surrupiou de Cohn: atacar sempre, negar responsabilidade todas as vezes e nunca admitir derrota — ouve de volta: “parece a política internacional dos Estados Unidos”. Essa noção ajuda a diminuir o cara como vilão inclusive além do alcance do filme, no futuro em que vai se tornar presidente, porque é a mais pura verdade.
Os EUA sempre foram assim, independente de quem é o chefe da vez, e por mais que a gente saiba que o laranjão no poder é pior para o mundo de forma geral ficamos nos perguntando se a denúncia não passou do prazo de validade.
Querido diário, hoje caguei na mesa do senado. A vitória é clara! O Lula vai sair correndo porque São Pneu não falha e sempre atende a nossa reza. Amém!
olhem essa pérola: https://nucleo.jor.br/garimpo/inquerito-alexandre-o-glande/