Síndrome de trending topics
Não sei se vocês viram o desabafo dos administradores da página de conteúdo alheio “Saquinho de Lixo” comparando um imbroglio jurídico que impediu temporariamente suas postagens com o drama da Eunice Paiva, que teve seu marido assassinado pela ditadura militar. Se não viram podem clicar no link para ver agora, mas já vou alertando que vão encontrar exatamente isso que está na descrição.
Estamos vivendo uma pandemia da síndrome de trending topics, onde a obrigação de produzir conteúdo faz uma galera dar saltos carpados para relacionar o assunto do momento às suas vidas — que lição posso tirar desse acontecimento que está todo mundo comentando pra que geral veja que sei fazer esse tipo de conexão espertinha? O LinkedIn está cheio de textos assim, apesar de ter rolado uma certa moderação no caso do assassinato do CEO da UnitedHealth, onde a moral da história pode dar gatilho em um ou outro usuário.
Mas olha quem fala: eu também faço correlações desse tipo — mas sempre tentando manter o senso de proporção, juro que você nunca vai me flagrar comparando minha necessidade de abandonar redes sociais que se tornaram tóxicas com a crise mundial dos refugiados de guerra, por exemplo.
E para garantir que serei o guardião do bom senso nesse espaço, considere assinar “Semana praticamente encerrada” por dez reais mensais, cem anuais ou contribuir com qualquer valor na chave pix arnaldo.branco@gmail.com. Sim, estou botando um preço no meu esforço para escrever coisas razoáveis.
Nesse número falo das polêmicas envolvendo o filme “Ainda estou aqui”, exalto “Emilia Pérez”, faço ressalvas a “Meu eu do futuro” e publico desenhinhos de bonecos narigudos na tentativa de obter um sorriso de vocês, assinantes exigentes. Uma missão bastante ingrata, mas nem por isso menos nobre.
Ah: e essa é a última newsletter antes do recesso. Volto em janeiro pra entupir a inbox de vocês com mais opiniões diletantes — que vocês solicitaram quando apertaram o botãozinho subscribe, é bom lembrar.
Segura um pouco o pelotão de fuzilamento
O filme “Ainda estou aqui” chegou na segunda fase de todo fenômeno cultural contemporâneo, que é ser contestado por todo mundo que sente a necessidade premente de demarcar que não participa do bonde da unanimidade — porque, sabe como é, representatividade importa. Como se a gente precisasse ser lembrado o tempo todo, apesar de todos os séculos de experiência, de que é impossível agradar a todos.
Tem também o fato de que é um filme dirigido pelo Walter Salles, que recentemente ultrapassou o George Lucas na lista de cineastas mais ricos do mundo, o que no fim das contas prova o que minha mãe sempre disse — cinema não dá dinheiro.
O ideal seria fazer como o Salles, que filma como hobby e tem um emprego de verdade, que no caso é o de banqueiro. Mas esse dado da revista Forbes explica o índice de rejeição do cara, já que hoje em dia está bem estabelecido que bilionários não deveriam existir, quanto mais ficar fazendo filminho.
Mas “Ainda estou aqui” também está sendo criticado por seu conteúdo político, porque mostra os efeitos da violência da ditadura sobre uma família de classe média branca — o que não podia deixar de fazer, porque é baseado na história real do desaparecimento do deputado Rubens Paiva. Quem faz essa ressalva tem um argumento pertinente: o de que as arbitrariedades cometidas pelo regime militar nunca cessaram para uma parcela significativa da população, e tratar a ditadura como um período de exceção é menosprezar esse fato.
Verdade, porém circunscrever a ditadura a algo que só aconteceu com playboy de esquerda também é ignorar que ícones do movimento negro como Marighella e Osvaldão foram assassinados enquanto lutavam para derrubá-la, e que várias das técnicas de repressão usadas hoje contra a população desvalida foram desenvolvidas naquela época.
Que é preciso produzir e consumir mais narrativas sobre os anos de chumbo através do ponto de vista de quem sempre foi tratado como nota de rodapé pelos livros de História é praticamente um consenso, salvo exceções como militares e a galera da Folha de S. Paulo que acredita em ditabranda.
No fim, acho que o filme serviu para dar mais uma demão de piche na narrativa de que a ditadura não foi tão radical ou que foi necessária — tem até uma série de vídeos no TikTok com adolescente falando mal de milico, uma trend bem vinda quando a gente lembra que do revisionismo histórico promovido por arrombados como os caras do Brasil Paralelo.
É isso então, vamos ver primeiro como a Fernandinha vai se sair no Globo de Ouro e no Oscar e depois a gente bota o Salles no paredão.
Arnaldo's crapbook
Meu caderninho de rascunho
Nessa seção falo de um filme (ou série, ou livro etc) que caiu bem e de outro filme (ou série, ou livro etc) que não bateu. Nem sempre vou tratar dos últimos lançamentos, principalmente no caso das coisas de que não gosto — porque o desagrado, assim como o Bolsonaro, precisa ser devidamente processado.
Melodrama musical de ação
Bateu: “Emilia Pérez” (2024)
Parece um pitch de elevador entreouvido na sede da A24: chefe sanguinário de um cartel de drogas do México resolve se submeter a uma cirurgia de mudança de sexo, só que em forma de musical. Lembra um pouco a sinopse de “Hedwig” só que com cabeças cortadas e metralhadoras no lugar de uma penectomia mal sucedida e guitarras. Mas “Emilia Pérez” tem méritos além do seu enredo singular.
Primeiro que não é bem um musical — calma, não estou dizendo que não ser um musical é um mérito em si, embora muitos façam essa afirmação sem pestanejar. Na verdade é um apanhado de jograis como aqueles que entraram na moda a partir dos anos sessenta, onde as canções são menos diálogos em forma de melodia e mais slogans e dados do IBGE gritados por um elenco encarando o espectador. Mas pra mim “Emilia Pérez” conquista o direito ao seu panfletarismo pela história cativante e pelas atuações de peso.
Karla Sofía Gascón interpreta Manitas del Monte, o traficante que se sente mulher e quer viver de acordo, e sua presença nos primeiros minutos é tão forte que faz sua transformação na lânguida Emilia Pérez parecer ainda mais impressionante. Em sua empreitada, Manitas recebe ajuda de Rita (Zo Saldaña), uma advogada que sabe que está apostando a vida quando topa sair em busca do cirurgião ideal para dar uma nova identidade a um criminoso jurado de morte.
Só que Emilia não quer só mudar de vida mas também minorar os efeitos dos crimes de seu alter ego, e funda uma ONG para encontrar os corpos dos desaparecidos na guerra do tráfico — uma mínima concessão à civilidade que nenhuma das partes envolvidas parecem interessadas em prover. Rita, que ficou milionária depois que ajudou na transformação de Emilia, prefere renunciar a uma vida de luxo na Europa para voltar ao México e trabalhar com sua nova amiga.
Mas o passado cobra um preço quando Emilia resolve se reaproximar dos filhos e da ex-mulher Jessi (Selena Gomez, único ponto fraco do elenco), que tem vários motivos para guardar ressentimento, embora passe do ponto na hora de acertar as contas. Um musical de ação que não tem medo de abraçar o melodrama, um caso onde o excesso de ingredientes de sabor intenso incrementam de forma surpreendente o resultado final.
Expectativas frustradas
Não bateu: “Meu eu do futuro” (2024)
De novo: “não bateu”, o título desta seção, é um habeas corpus preventivo. Já botei aqui alguns filmes que até gostei, mas que não caíram bem por algum motivo, mesmo sem ter qualquer contraindicação. “Meu eu do futuro” (que tem um título original bem melhor, “My old ass”) apresenta uma premissa ótima — durante uma viagem de ácido uma garota de 18 anos abre um canal de comunicação com ela mesmo no futuro — que é desperdiçada no que parece ser um curta-metragem esticado ou uma esquete que estende seu set up além do ponto ideal.
Durante a primeira conversa entre a Elliott de 18 anos (Maisy Stella) e a Elliott de 39 (Aubrey Plaza) descobrimos que no futuro ela conseguiu se estabelecer na cidade grande (a garota mora num fim de mundo espremido por um lago enorme) mas leva uma vida sem as aventuras que sua versão mais jovem sempre idealizou. Bem, se eu fosse uma menina do interior com um look sapatão de sítio e virasse a Aubrey Plaza morando na capital eu ia achar que venci um pouco na vida sim.
O maior problema é que entre todas as coisas que você gostaria de saber de uma versão mais velha de si mesmo, Elliott adolescente só parece preocupada com sua vida amorosa. E quando ela conhece um garoto que é a realização de seus sonhos adolescentes, toma um esguicho de água fria da Aubrey Plaza: fique com qualquer um, menos esse. Ficamos imaginando o motivo, e a explicação dessa ressalva é a única carta na manga dos realizadores para manter nosso interesse aceso até o final.
A Elliott mais velha é menos iludida com o amor e tem outros interesses: por exemplo, obriga a Elliott adolescente a ser um pouco menos cuzona com a mãe e seus irmãos, e então temos umas cenas nesse sentido que são insuficientes como trama B — só servem mesmo pro filme passar no teste de Bechdel.
Daí o filme vira basicamente o desenrolar da aproximação amorosa entre Elliott novinha e seu fruto proibido, lembrando uma versão menos carismática de “Meu primeiro amor” sem o enxame de abelhas. A revelação final pode até te pegar no contrapé, mas é uma recompensa mirrada para um início tão promissor.
Vi “Ainda Estou Aqui” por meios escusos, já que moro literalmente no meio do mato e o que me incomodou mais foi algo que o jovem Ora Thiago salientou no video que ele fez (e pelo qual foi grandemente julgado): a cena do militar bonzinho, que “não concorda” com as atrocidades que estavam sendo feitas… será que isso era tão mais importante do que a atuação da protagonista na luta por demarcação de terras indígenas, que apareceu como menos do que um detalhe? É só uma pergunta mesmo… além de um comentário enorme para fins de maximização de engajamento 😌✨
Sou sua fã incondicional e amo suas ilustras, e aqui queria fazer apenas uma ressalva: dentre os bilionários, um que usa seu dinheiro pra fazer filme (e que filme!) contra a ditadura e seus estragos não tem mérito?? Quisera todos eles tivessem esse compromisso louvável, ou similares. Por isso não entendi a proposta de paredão. Mas que ele tem que ser taxado, sim, e muito, como todos os outros.