Excesso de exposição
Semana passada rolou um exposed no meio literário que atingiu até a reputação das tartarugas, depois tivemos a publicação de uma planilha elaborada pelo pessoal das agências entregando influencers que se comportam mal, e na sequência outra lista com a mesma função, só que denunciando maridos problemáticos — essa com o atenuante de ser uma piada e com o agravante de não ter graça.
Antigamente os escândalos tinham efeitos mais marcantes como, sei lá, acabar com a carreira política de um Kennedy; hoje em dia é preciso explicar de quem se está falando toda vez que uma intimidade vaza na internet. A gente precisa voltar a distinguir o que é fofoca e o que é denúncia. Nada contra o exposed, tudo contra a sua banalização.
Por isso enquanto não sou eu o denunciado peço que você assine a versão paga (que é igual à versão grátis, apenas enviada com mais sentimento de gratidão) de “Semana praticamente encerrada” — por dez reais mensais, cem anuais ou contribua com qualquer valor na chave pix arnaldo.branco@gmail.com. Também ajuda adquirir meu livro “A bíblia tinha que ser um power point” que só flopou porque eu não estou na panela do mercado editorial.
Nesse número volto a falar de IA e da vontade do Elon Musk em ser engraçado, entro para o fã=clube de Kieran Culkin em “A verdadeira dor” e fundo sozinho a irmandade dos detratores de “Conclave”. Tem também os meus desenhos, na falta de um artista mais habilidoso. Aproveite.
Compro talento
Já falei pra minha terapeuta: se o capitalismo acabasse a gente ia ficar sem assunto. Toda sessão eu lamento que meus problemas profissionais não deixam muito espaço pra maiores investigações sobre a minha alma, e quando a gente vai mais fundo no meu subconsciente geralmente falamos sobre questões de autoestima e ansiedade relacionadas ao mercado de trabalho.
Esse é um dos motivos porque não vejo muita graça em comemorar os fracassos dos bilionários que mandam no mundo. Não fico tirando sarro quando a máquina de plágio do Sam Altman ganha um concorrente que copia os outros de forma mais eficiente ou quando ninguém se interessa em morar no hotel Habbo do Mark Zuckerberg — porque invejo profundamente o fato de que os caras têm dinheiro para tornar sua extrema incompetência uma questão irrelevante, pelo menos no que diz respeito ao faturamento.
Mas confesso que toda vez que vejo algo assim me sinto um pouco vingado:
Sim, o sujeito que acumulou mais capital na história da humanidade queria tanto ter dom pra comédia que pagou pela oportunidade de apresentar o programa de esquetes mais famoso do mundo, com esse resultado tenebroso que você conferiu, se teve estômago pra aguentar esses cinco minutos intermináveis. Como se não bastasse, o cara comprou uma rede social por 44 bilhões de dólares porque é viciado em tentar emplacar suas piadas e bota subordinados pra trabalhar quando elas têm um desempenho abaixo da sua expectativa (sempre).
Elon Musk é o maior exemplo de que existe sim um limite para o que o dinheiro ilimitado pode comprar, e isso que a gente ainda nem entrou na questão da sua feiúra incurável e da sua baixa autoestima crônica — lembrar que o mesmo cara que vive prometendo colonizar Marte é uma criança grande que não admite perder no videogame.
Não é à toa que empurrar Inteligência Artificial é a mais nova obsessão dos tech bros, já que ela é uma tentativa de hackear o talento — e mesmo com todo dinheiro investido, é uma bem meia boca. Enquanto roteirista fico duplamente satisfeito: primeiro porque estão provando que não é assim tão fácil reproduzir minhas habilidades e depois porque isso é praticamente uma confissão desses bilionários de startup: eles sabem que ficar exigindo ideias originais para um bando de minions não conta como criatividade.
Mas talvez os caras não se importem com isso. O curioso é que ter uma mente criativa não garante uma remuneração decente: a maior parte do pagamento vem em forma de vaidade autoral, e o fato de que isso não parece inibir o projeto de enfiar IA em tudo revela a mentalidade de filho mimado dessa galera: quando você trabalha pra viver, costuma valorizar as coisas que cria, rico é que não vê diferença entre saber fazer e mandar comprar.
Arnaldo's crapbook
Meu caderninho de rascunho
Nessa seção falo de um filme (ou série, ou livro etc) que caiu bem e de outro filme (ou série, ou livro etc) que não bateu. Nem sempre vou tratar dos últimos lançamentos, principalmente no caso das coisas de que não gosto — porque o desagrado, assim como o Bolsonaro, precisa ser devidamente processado.
Método Culkin
Bateu: “A real pain” (2024)
Decidi ver “A verdadeira dor” depois de tomar uma série de spoilers na cara quando ouvi um episódio do podcast Scriptnotes com o Jesse Eisenberg, que escreveu, dirigiu e atuou no filme. Na entrevista Jesse falou do seu processo de escrita, dos problemas de produção e, em boa parte do tempo, do Kieran Culkin. Impressionante como o cara é ladrão de cena até quando não está presente.
No podcast descobri que para virar praticamente o único assunto dos poucos filmes que faz — pelo menos pra proporção do seu talento — Kieran não ensaia com o elenco, chega no set sabendo rudimentos do roteiro, dá uma única lida antes de ligarem as câmeras e grava tudo de primeira.
É difícil acreditar julgando por suas cenas. Em “A verdadeira dor” ele é Benji Kaplan, primo de David (Eisenberg), que juntos resolvem fazer uma “visita guiada do Holocausto” na Polônia onde viveu uma avó querida que faleceu recentemente. Além de visitar monumentos para as vítimas da segunda guerra mundial e um campo de concentração, os dois também desejam conhecer a casa onde sua parente viveu antes de fugir para os Estados Unidos.
David é um sujeito prático e ocupado, Benji tem alergia a amadurecer — pelo menos do jeito que a sociedade espera que ele amadureça, se adaptando a um emprego chato e procriando. Esse simples constraste, turbinado pela recusa de Benji em abafar a dor que precisa sentir intensamente (pela perda da vó, pelo massacre dos judeus poloneses) rende os melhores momentos dessa DR que às vezes atinge os outros acompanhantes da tour, turistas de origem variada que são ao mesmo tempo abusados e seduzidos por esse personagem muito bem escrito.
Humor de constrangimento da melhor qualidade, na boca do melhor ator de tipos esquisitos disponível no mercado.
Belos planos de padre cochichando
Não bateu: “Conclave” (2024)
Alguns filmes acabam caindo nessa seção por pura birra de roteirista, porque se fosse julgar “Conclave” por sua fotografia, atuações e direção de arte teria que meter as famosas cinco estrelinhas. Mas infelizmente não consegui ficar fascinado como alguns dos meus colegas por essa bela catedral, infelizmente habitada por um enredo que parece ter feito voto de pobreza.
A história é simples: o papa morre e o cardeal Lawrence (Ralph Fiennes) fica com a responsabilidade de organizar a votação para a escolha do próximo. De orientação mais liberal, Lawrence deseja evitar que o conservador radical Tedesco (Sergio Castellitto) seja escolhido, embora só possa fazer uma campanha discreta entre seus pares. Se você gosta de ver padre cochichando, “Conclave” é uma boa opção.
Essa trama palaciana poderia ser mais cativante se fosse um pouco mais trabalhada. Mas suas reviravoltas não só são previsíveis como também repetidamente telegrafadas nos diálogos entre os postulantes ao cargo e seus cabos eleitorais. Candidaturas vão sendo anuladas porque vários cardeais não apenas cometem infrações graves ao código papal, mas também deixam uma trilha de provas contra si de dar inveja para os bolsonaristas que tentaram dar um golpe depois da eleição de 2022.
Em tese os cardeais são obrigados a ficar todo o período do Conclave em quarentena, sem poder ser influenciados pelo noticiário ou por informações contrabandeadas para dentro da Capela Sistina — mas é justamente isso que acontece o tempo todo, mesmo com o pobre do Ralph Fiennes repetindo essa regra ad nauseam.
Toda a aura de mistério insinuada nos rituais da Igreja filmados com extremo bom gosto cai por terra diante desse constante clima de fofoquinha e formato de enigma metido a Agatha Christie. Também paira sobre a ação uma subtrama de terrorismo fora dos limites do Vaticano que o filme não se dá ao trabalho de explicar e que parece ter a única função de justificar a última e também previsível guinada do roteiro. Pra mim o resultado foi fumaça preta.
a inteligência artificial jamais conseguirá uma importante habilidade para a criação: a burrice orgânica
E não é que o chatgpt foi o primeiro a perder o emprego por causa da IA generativa