Isso é muito Vale Tudo
A nova versão da novela Vale Tudo começou a ser exibida essa semana e os autores vão ter que rebolar pra fazer o texto original de 1988 ainda parecer relevante em 2025. Uma filha que vende a casa da mãe? Hoje em dia seria cogitada pro Senado. Fugir do país com uma mala de dólares? Dá pra fazer isso gravando uma live no celular, pega nada. Vale tudo é a nossa Black mirror, sempre perdendo a corrida para a realidade.
Sabe quem também está perdendo a corrida para a realidade? Eu, que estou aqui pedindo que você assine (por dez reais por mês ou cem por ano) a versão paga dessa newsletter, que é igual à gratuita e não vem nem com um bilhetinho de agradecimento. Onde eu estou com a cabeça? Se a vontade de me ajudar bater forte também tem o pix arnaldo.branco@gmail.com e a oportunidade de adquirir meu livro “A Bíblia tinha que ser um power point”. Pronto, comercial feito, vamos ao menu.
Nesse número falo da minha experiência fracassada com inteligência artificial, defendo a terceira temporada de “White Lotus” e digo o que achei meio meh nos dois primeiros episódios de “The studio”. De brinde tem cartuns, e passa a régua.
Chega de produtividade
Outro dia eu resolvi apelar para um aplicativo de inteligência artificial porque não estava conseguindo terminar o roteiro de uma graphic novel. Pensei que mal não ia fazer — o que mais me angustiava era o tanto que faltava pra chegar na última página; na pior das hipóteses eu teria um texto finalizado que poderia corrigir e deixar do meu jeito.
Mas o que eu recebi de volta foi bem decepcionante: apesar de ter alimentado o aplicativo com a sinopse, farto material de minha humilde autoria e dado orientações precisas sobre o que queria obter, o claude.ai me devolveu uma amostra extremamente equivocada do que ele entendeu sobre o meu estilo e senso de humor — até a trama, que estava bem especificada nas instruções, o bicho interpretou errado. Apesar da coisa parecer ter sido escrita por um humano, com piadas e gírias corretamente aplicadas, não era nem um pouco parecida com algo que eu faria, ou mesmo com algo que eu poderia gostar se deparasse com o conteúdo em algum lugar.
(Depois me disseram que usei a ferramenta do jeito errado, meio como se eu pedisse pro microondas lavar meus pratos, o que confirma minha teoria de que as aplicações dela são tão específicas que vão servir a menos propósitos do que a grandes corporações prometem pra gente. De qualquer forma deixa eu terminar meu raciocínio.)
Não usei nada da contribuição da IA, mas confesso que deixei a parte escrita por ela sem apagar até finalizar o roteiro, só pra aproveitar a sensação de que o trabalho estava feito e eu apenas estava polindo. Pra não dizer que a experiência foi totalmente inútil, serviu como placebo.
Essa tentativa me lembrou as vezes em que fui convidado para uma sala de roteiro porque meus contratantes “amavam o meu trabalho” — só que o que realmente queriam de mim era habilidade para escrever algo que não sabiam definir com precisão mas que definitivamente não tinha nada a ver com algo que eles pudessem encontrar no meu currículo. Todo produtor que me chamou para para escrever um projeto criado por ele tinha esperança de que eu adivinhasse que tipo de resultado desejava alcançar se tivesse talento pra fazer sozinho.
Foi o que percebi: IA não reproduz o trabalho que faz um escritor, mas sim o de um editor que não faz ideia do que existe de particular e valioso no material que está formatando. Usar o trabalho dos outros para atingir um resultado com o qual você só pode sonhar vagamente é meio que o serviço que a inteligência artificial oferece, porque ela não parte de uma leitura criativa da obra alheia, mas de uma média de todas as leituras possíveis daquela obra. Ela trabalha com um denominador comum.
O que parece ser unanimidade entre os entusiastas do bagulho é que IA é uma boa forma de otimizar o trabalho, de aumentar a produtividade, justamente quando minha maior ambição é produzir menos e melhor.
É verdade, como vários argumentam, que a IA é só uma ferramenta, e de fato fica meio esquisito sacudir o punho praguejando contra uma novidade tecnológica; parece que você tá comprando briga com uma calculadora. Mas em vista dos planos do Vale de Silício pra transformar o mundo em um paraíso feudalista pra bilionário, me sinto menos ingênuo com a minha desconfiança em comparação a quem afirma categoricamente que ela só foi feita pra ajudar.
Arnaldo's crapbook
Meu caderninho de rascunho
Nessa seção falo de um filme (ou série, ou livro etc) que caiu bem e de outro filme (ou série, ou livro etc) que não bateu. Nem sempre vou tratar dos últimos lançamentos, principalmente no caso das coisas de que não gosto — porque o desagrado, assim como o Bolsonaro, precisa ser devidamente processado.
Efeito rebote
Bateu: “White Lotus”, terceira temporada (2025)
Tive vontade de falar da terceira temporada de White Lotus porque vi muita gente metendo o pau, e porque meu histórico com essa série é meio acidentado. Vi a primeira temporada arrastado, não entendendo porque todo mundo estava amando, não assisti a segunda, perdendo o bonde do meme “these gays are trying to murder me”, mas comecei a acompanhar a terceira com a Rafa, aproveitei que ela viajou pra pausar, finalmente vi a segunda e retomei a atual. E agora, como diz o nome dessa seção, bateu.
As reclamações da galera são parecidas com as que fiz quando encarei o seriado na estreia. Eu também achei os dilemas dos personagens da primeira temporada excessivamente esticados, e não tinha achado a turma de riquinhos agrupados no resort assim tão interessante — o playboy insuportável que passa os seis episódios reclamando do quarto, o sujeito obcecado com um possível câncer nos testículos como símbolo da sua emasculação enquanto pai da família, a rica de voz pastosa às voltas com a urna contendo as cinzas da mãe — e a crítica sobre a visão colonial e etnocêntrica das classes mais favorecidas me pareceu muito in yo face.
Foi exatamente o que reencontrei na terceira temporada — mas dessa vez rolou uma ressonância, e eu gostei apesar dessas mesmas características; tenho quase certeza que vou curtir a primeira se decidir rever. Pode ser verdade, como alguns dizem, que não acontece nada entre a cena do tiroteio no primeiro episódio — como a marca dos hotéis White Lotus sobrevive a tanto assassinato é um dos mistérios da série — e a aproximação da season finale, mas o importante é como não acontece nada.
O sentimento de desagregação que atinge o indivíduo em férias é muito bem capturado pela produção, e as tramas arrastadas me deram uma sensação de vida real em vez de uma versão super editada para capturar a atenção do público — gostei da falta de pressa que tinha me enervado antes. A locação na Tailândia e o elenco de favoritos da casa (Walton Goggins, Parker Posey, Sam Rockwell) talvez tenha ajudado na digestão.
Ou talvez eu só esteja sendo chato gostando de uma coisa que desagradou os fãs de primeira hora. Agora deixa eu rever a terceira temporada de “The Bear” pra ver se finalmente entendi o que eu achei.
Variações sobre a mesma piada
Não bateu: “The studio” (2025)
Acho que estou inaugurando um novo patamar no quesito má vontade fazendo restrições a uma série que só botou no ar dois episódios (essa semana sai o terceiro). Mas como expliquei algumas vezes, o intento dessa seção não é esculhambar e sim explicar o motivo por que determinado filme, série ou livro não caiu nas minhas graças — uma distinção que não faz nenhuma diferença no currículo de ninguém.
Hollywood sempre se olhou com desconforto no espelho, criticando sua vaidade e cupidez em várias produções como “Crepúsculo dos Deuses”, “Assim estava escrito”, “O nome do jogo”, “Action”, “Entourage”, “Bojack Horseman”. E nos últimos anos, com tanto fato novo na tal fábrica de sonhos (#me too, fusões de estúdios, atores ativistas), resolveram enfileirar mais um tanto: “A franquia”, “A oferta”, “Era em Hollywood” e esse “O estúdio”.
Gosto da persona maconheira do Seth Rogen apesar do cara fazer sempre o mesmo papel de bocó reativo — e aqui ele está exatamente assim, interpretando Matt Remick, um executivo de Hollywood que vira chefe de produção por nenhum mérito além de ter sabido esperar a sua vez. Agora ele é o responsável por dar sinal verde para os filmes cheios de arte e significado que deseja lançar — ou não, uma vez que o verdadeiro cabeça do estúdio (Bryan Cranston deixando o figurino setentista atuar por ele) só quer saber de franquias e dar lucro pra acionista.
Com a cinematografia de “O jogador” na cabeça, a série apela para o movimento de câmera pra dar dinâmica às cenas de gente cuspindo diálogo pretensamente ferino tirando sarro dos tipos corporativos que sequestraram a indústria. Mas tudo é meio que prejudicado pela exploração exaustiva de um único tema.
No primeiro episódio Matt tenta unir o útil ao artístico quando pega um projeto idiota estrelado pelo mascote do Ki-Suco, cuja propriedade intelectual pertence ao estúdio, e aproveita para embutir nele uma produção super autoral do Martin Scorsese (a série tem várias participações especiais de figurões de Hollywood) sobre a seita do pastor Jim Jones — famoso por ter feito seus seguidores beber veneno junto com o refresco. É claro que vai dar merda, e a piada recorrente é que o personagem de Rogen é um covarde que sempre recua nas suas iniciativas por medo do chefe, desagradando todo mundo no processo.
No segundo Matt atrapalha a filmagem de uma cena de plano-sequência — em um episódio todo filmado em plano-sequência, o recurso favorito da série, e que está na ordem do dia por causa do hit “Adolescência” — porque é um cinéfilo sem noção que toda hora inventa uma desculpa para interferir no trabalho da diretora Sarah Polley. É meio como se tentassem recriar “Um convidado bem trapalhão” sem o Peter Sellers, uma empreitada que devia ser proibida por lei. De novo me incomodaram as variações um tanto previsíveis em cima da mesma situação cômica.
Pelo que vi nas redes sociais sou um dos únicos caras que não gostaram dessa amostra inicial (tá com 92% de aprovação no Rotten Tomatoes), mas quem sabe o resto da temporada não consiga reverter o placar.
Galera, agora que vi que prometi falar de Adolescência — acabei mudando de última hora pra White Lotus, meus sentimentos sobre ela estavam mais sólidos, mal aí. Nas próximas prometo falar sobre :P
Sempre adoro os textos (esse da IA abre portas na cabeça) mas amei a quebra de expectativa de dizer que falará sobre Adolescência e - SURPRESA - é White Lotus! Hahahahaha PLOT TWIST