Me recuso a entrar gentilmente nessa noite mansa
“Do not go gentle into that good night” é aquele poema do Dylan Thomas sobre a morte — ou sobre a velhice, que é o menu degustação da morte — já gasto de tão citado, e que contém o refrão “Rage, rage against the dying of the light” (“Ódio, ódio contra a morte da luz") que sempre tenho vontade de recitar toda vez que cai a energia aqui em Santa Teresa.
Me identifico com o poema pois cheguei ao meio século de vida sob protesto e fico revoltado quando sou julgado de acordo com a minha idade — o que acontece com frequência, uma vez que o etarismo é o preconceito mais socialmente aceitável — pois claramente ainda sou um jovem operando essa carcaça por dentro da minha cabeça, como se meu corpo fosse um mecha bem desvantajoso de pilotar. Já que é inevitável, até entro nessa caralha de noite mansa — mas entro esperneando.
Se você ficou com pena e quiser colaborar para o meu fundo de aposentadoria pode assinar essa newsletter por 10 reais mensais ou 100 anuais, ou comprar meu livro, ou me fazer um pix (arnaldo.branco@gmail.com) ou me incluir em suas orações.
Nesse número falo do capitalismo como o melhor sistema possível para nos conduzir para a catástrofe que sempre foi seu objetivo final, teço loas com atraso a “Licorice Pizza” e peço vênia (também de forma retardatária) para criticar “Kimi” um filme que talvez você nem tenha ouvido falar e que podia dormir sem essa. Além disso tem os cartuns que fiz com meus dedos enrugados e cartilaginosos. Morituri te salutant.
A ordem natural do Universo
“O maior truque do diabo foi convencer o mundo de que ele não existe”. Essa frase está no filme “Os suspeitos”, aquele em que a gente acha que o Kevin Spacey é um coitadinho mas descobre que na verdade ele é um super vilão, meio como aconteceu com o Kevin Spacey na vida real.
Na internet a citação é atribuída ao poeta Charles Baudelaire — mas eu não levo fé porque se quando o google tinha uma margem razoável de acertos já surgia crédito errado à beça imagina agora que ele vem com inteligência artificial acoplada e responde de acordo com a média dos erros de todo mundo.
Além disso a frase nem faz muito sentido porque não me parece que o diabo tenha tentado convencer ninguém da sua não-existência. Além de ostentar um look nada discreto com chifre, rabo e cútis vermelhaça, o cara é super fácil de invocar e ainda vive aparecendo pra fazer oferta na alma da galera. Até Jesus que foi tirar um sabático pra meditar no deserto ele foi lá perturbar.
Mas lembrei dessas aspas famosas pra falar que o tal truque do diabo é a estratégia inversa do capitalismo — porque, ao contrário do diabo, ele sempre quis convencer o mundo de que é a única coisa que existe, a ordem natural do universo, a última latinha de coca-cola na prateleira do supermercado das ideias. Qualquer pregação contra seus preceitos, mesmo uma razoável como a noção de que todo mundo deveria poder comer independente do saldo bancário, sempre foi rotulada de extremista.
Foi assim que seus defensores passaram anos se sentindo à vontade para dizer coisas como “o comunismo não deu certo em nenhum lugar” apesar do capitalismo ser o sistema econômico da esmagadora maioria dos países com os piores índices de desenvolvimento humano do mundo. Era uma superioridade autodeclarada que dispensava comprovação; um exemplo de prosperidade aqui e outro ali davam a essa doutrina bem arrombada o benefício da dúvida.
Agora que está tudo ruindo os liberais estão perdendo a pose. Os patrões no LinkedIn reclamando que as pessoas não querem mais trabalhar por causa do bolsa família — praticamente confessando que estão oferecendo uma miséria de salário — ainda acreditam no monoteísmo capitalista, do contrário pensariam duas vezes antes de entregar o quanto estão descolados da realidade.
O capitalismo não só não é a única alternativa possível como está cada vez mais claro que qualquer outra é melhor.
Arnaldo's crapbook
Meu caderninho de rascunho
Nessa seção falo de um filme (ou série, ou livro etc) que caiu bem e de outro filme (ou série, ou livro etc) que não bateu. Nem sempre vou tratar dos últimos lançamentos, principalmente no caso das coisas de que não gosto — porque o desagrado, assim como o Bolsonaro, precisa ser devidamente processado.
Captei a vossa mensagem amado mestre
Bateu: “Licorice Pizza” (2021)
Eu sei que estou atrasado pra falar de “Licorice pizza” mas é que hesitei todo esse tempo pra conferir — sei lá se por causa do trailer que usa pela enésima vez “Life on Mars” do David Bowie para sublinhar que é um relato de rito de passagem e angústia adolescente ou só porque passou batido pela minha bolha, indício de filme morno principalmente quando se trata da obra de um realizador que muita gente acha obrigatório.
Paul Thomas Anderson é um diretor que tem tudo a ver com essa seção porque não existe ninguém que faça tantos filmes que dependem mais da eventualidade de seu santo bater do que com uma proficiência técnica e narrativa capaz de conquistar qualquer público. No meu caso o cara emplacou alguns na relação de favoritos (Sangue negro, Embriagado de amor, Boogie nights) e outros na lista Não sei se entendi a proposta (O mestre, Trama fantasma, Vício inerente — e olha que amo o livro do Pynchon). Bom, ainda não sei se posso chamar esse de um dos meus preferidos mas com certeza ele bateu.
“Licorice Pizza” é a história de amor até certo ponto platônico entre Alana (uma das Haim), de 25 anos, e Gary (o filho do Philip Seymour Hoffman), ator mirim em vias de aposentadoria aos 15. Ele é mais ou menos maduro para a idade (tem alma de empreendedor e empreendimentos meio idiotas) e vive arrastando Alana para seus esquemas. Enquanto isso, andam esbarrando em figuras que circulam por San Fernando Valley, como o namorado maluco da Barbara Streisand (Bradley Cooper, em um papel muito parecido com o que ele fez em “American Hustle”) e o ator veterano interpretado pelo Sean Penn, em cenas que são acontecimentos isolados dentro da trama mas bem trabalhados como veículo para estabelecer a relação entre os protagonistas.
E é uma relação bacana de acompanhar, porque é tão improvável quanto plausível graças ao texto e ao desempenho da dupla. Esse é um filme que tem o famoso (e nem sempre eficaz) “carinho pelos personagens” e parece ter mais intento em criar uma vibe do que cativar pela história. Comigo deu certo, mas tenho certeza que nesse exato momento tem alguém terminando de assistir e pensando Não sei se entendi a proposta.
Spoiler preventivo
Não bateu: “Kimi”(2022)
O filme que não bateu também não é recente: passou abaixo do meu radar em 2022 apesar de ser do Steven Soderbergh, um diretor que curto sazonalmente e que muitas vezes acaba vítima do seu excesso de produtividade, apesar de volta e meia prometer que vai aposentar a claquete. E confesso que só fui checar “Kimi”, obra inspirada pelo clima claustrofóbico do lockdown pandêmico, porque me disseram que um projeto que fiz — ainda bem que registrado na Biblioteca Nacional em 2018 — lembrava a trama dessa produção de baixo orçamento. Fiquei até meio aliviado de não gostar, embora ache que o bagulho não tem tanto a ver com a parada que escrevi.
“Kimi” é sobre Angela (Zoë Kravitz), uma funcionária de TI que trabalha de casa — além da história se passar pouco depois do surto de covid 19, com as medidas de confinamento ainda em vigor porém um tanto flexibilizadas, nela seu personagem sofre de síndrome do pânico depois de um estupro, o incidente mais usado por escritores preguiçosos quando querem escrever uma mulher com marcas de um trauma profundo. Sua função é analisar áudios das interações de usuários com um sistema de inteligência artificial chamado Kimi para encontrar erros de funcionamento e consertá-los.
Tudo segue meio mais ou menos na vida de Angela — ela toma quilos de remédios para controlar a ansiedade e mesmo assim não consegue deixar seu apartamento — até que ouve uma gravação que parece registrar o momento de um assassinato. Não obstante pegar emprestado a premissa de “A conversação” e “Blow out” (que já era a releitura de Brian De Palma para “Blow up” do Antonioni), “Kimi” resolve sabotar sua própria teoria da conspiração quando torna os vilões — empregados da empresa que desenvolve a IA interessados em deletar a gravação comprometedora — em paspalhos desqualificados incapazes de interceptar uma menina de 1,57m que nem ao menos consegue andar direito na rua.
Pra piorar o filme também presta homenagem a “Janela indiscreta” de Hitchcock quando faz com que Angela se relacione com um advogado que mora no prédio em frente, onde também vive um sujeito com cara de tarado que toda hora fica espionando Angela e que é usado como Deus ex Machina para ajudá-la a se livrar dos bandidos na cena decisiva. Eu me desculparia pelo spoiler se ele não fosse tão telegrafado pelo roteiro — e quem sabe agora que eu arruinei o final você não tome a sábia decisão de não perder uma hora e meia com isso aqui.
Confesso que fui pega de surpresa com a referência a Dylan Thomas assim, logo de início. Conheci através da interpretação do também galês Michael Sheen.. um vídeo do qual eu nunca saio sem alguma água escorrendo pelo rosto...
Já assinei a news, já comprei o livro e com certeza estás nas minhas orações...rs <3
A quinta é a nova sexta, mas também a nova quarta às vezes, né?
Também gostei e gosto muito de Licorice Pizza, e acho que o PTA já entrou pro (meu, pelo menos) panteão de diretores com carta branca pra fazerem o que quiserem. Mesmo quando não bate, ele tem… personalidade.
O último filme do Cronenberg, por exemplo, não foi dos meus favoritos, mas ele também pode fazer o que quiser. Autores que “clamam contra o apagar da luz que finda” (Thomas por Campos) já merecem medalha.