Imbuído do espírito olímpico — ou seja, torcendo pra subir ao pódio menos por meu esforço e mais pelo erro dos meus adversários — lanço um novo número da newsletter Semana praticamente encerrada, a newsletter que canta vitória antes da hora.
De novo apelo para o sugar daddy que existe em cada um de nós, com graus variados de capacidade financeira, para pedir ajuda para um escritor autônomo enfrentando um mercado em crise, que no caso sou eu mesmo. Com dez reais por mês ou cem por ano você receberá rigorosamente o mesmo conteúdo que os outros assinantes, mas podendo reclamar do serviço com muito mais propriedade, da mesma forma que um cidadão em dia com seus impostos. Pegar ou largar.
Além disso você pode comprar meu livro “A Bíblia tinha que ser um powerpoint” — não para me ajudar mas para obter em primeira mão o próximo item inescapável do novo cânon ocidental, aqui.
Nesse número de Semana praticamente encerrada falo da mania do brasileiro de prometer que não vai levar desaforo para casa e sempre acabar levando; elogio a mixtape “Músicas para sair na mão, Vol. 1” e faço algumas restrições a “Fora de série", que é como se chamou o filme “Booksmart” por aqui. Além disso ofereço cartuns e minha visão de mundo, que é limitada porém única — e que está à venda por 10 reais/mês ou 100 reais/ano, já tinha mencionado isso?
Reparação retórica
Outro dia um casal foi filmado fazendo gestos racistas em uma roda de samba e o que aconteceu depois era de se esperar: rolou uma tremenda onda de indignação, primeiro dirigida ao casal e depois aos frequentadores da roda, especialmente contra a pessoa que filmou a cena e não deu pelo menos uma bifa nos racistas. É impressionante como 100% das pessoas que não estavam lá teriam quebrado de pau a dupla de arrombados, e um tremendo azar que nenhuma delas nunca esteja em nenhum dos lugares onde manifestações lamentáveis como essa vivem acontecendo.
Sendo um cara fracote que há muito tempo deixou de fazer exercício com a fantasia de poder bater nos outros e agora está apenas focado em não atrofiar, e tendo uns oito tipos de fobias sociais diferentes que me impedem de entrar em uma briga só pelo pavor das outras pessoas olhando, fico abismado com o grande número de Jackie Chans de twitter que brotam nessas ocasiões. Eu não consigo nem insinuar que quebraria a cara de alguém sem meu superego berrar que essa é uma hipótese muito improvável.
Momentos onde a promessa de ação serve como compensação para a falta de ação em si são muito comuns, especialmente no discurso progressista, onde sempre se fala em socar nazi, queimar a racista e guilhotinar rico mas quase nunca vemos coisas do tipo acontecendo. É um pouco como dizer “isso não vai ficar assim” em uma ocasião onde, sim, provavelmente isso vai mesmo ficar assim — só estamos falando para pontuar que não estamos indiferentes ao que está acontecendo.
Já virou piada lembrar as vezes em que a esquerda adotou um slogan para marcar posição sobre algo que era radicalmente contra e esse algo aconteceu de qualquer maneira. “Não vai ter Copa”, “não vai ter golpe”, “não passarão”, “ele não” — todos só serviram pra marcar quão fracassadas foram as tentativas de resistência, o que nos leva a pensar que talvez adotar uma frase com negativa no meio pode dar um puta azar para a sua causa.
É claro que esses fracassos têm explicações bem menos deterministas do que botar tudo na conta da passividade do brasileiro. A gente admira os franceses porque eles queimam carros e acabam com a malha asfáltica para protestar mas mesmo assim as reformas liberaloides do Macron passaram. Nessa fase do capitalismo selvagem tratorando tudo talvez até a ação direta seja mesmo inútil.
O que não significa dizer que ela não seja desejável. Racista tem mais é que apanhar mesmo, mas se quiserem que eu bata alguém vai ter que segurar pra mim.
Arnaldo's crapbook
Meu caderninho de rascunho
Nessa seção falo de um filme (ou série, ou livro etc) que caiu bem e de outro filme (ou série, ou livro etc) que não bateu. Nem sempre vou tratar dos últimos lançamentos, principalmente no caso das coisas de que não gosto — porque o desagrado, assim como o Bolsonaro, precisa ser devidamente processado.
Bateu: “Músicas para sair na mão, Vol. 1” — Rap, falando (2024)
Quebrando na ideia
É engraçado recomendar na seção “bateu” a mixtape “Músicas para sair na mão, Vol. 1” do conglomerado “Rap, falando” — e irônico que seja na mesma edição em que confesso no texto principal que não sou lá muito bom para, bem, sair na mão. Mas enfim, bateu mesmo e tô há dias ouvindo o bagulho.
O rap é um gênero beligerante na essência e está sempre prometendo conflito — e muitas vezes entregando, o fantasma do Tupac que o diga — então não tem muita novidade na unidade temática. Mas além de canções excelentes e da qualidade bizarra da produção, “Músicas…” junta veteranos e novatos para mostrar que hoje em dia existe uma cena coesa — claro que com algumas rixas, tanto é que sobram acusações para haters sem noção e rappers vacilões (Fleezus: “Quantos eu já vi pagando de MC / Sobe no palco pra falar besteira / Então senta aqui que os reais tão no mic / Não é vídeo-aula, eu tô dando a letra”).
“Músicas…” tem boom bap, drill, grime e vinhetas hilárias. Seria legal ter mais minas envolvidas, até porque Tasha & Tracie, Bivolt, MC Luanna e outras convidadas se destacam no meio de tanta rima abastecida com testosterona.
Apesar disso, a mixtape é um excelente apanhado: em tese participam 44 músicos, mas não tenho certeza dessa informação porque estou citando uma matéria da Rolling Stone que credita meu amigo Ronald Rios como artista. Não que ele não seja — mas na mixtape o cara faz o papel de DJ Suvaco, um locutor que ajuda a contar a história que liga as canções, um ajuste de contas com uma gangue em um bar de rock que tem como cicerone uma espécie de Supla falando cinco expressões em inglês pra cada uma em português.
Recomendo muito, c’mon kids.
Problemas do gênero
Não bateu: “Booksmart” (2019)
Uma vez, durante uma aula do Robert Mckee — sim, aquele Robert Mckee que o Brian Cox interpreta de um jeito exagerado porém certeiro em “Adaptação”, do Spike Jonze, com roteiro do Charlie Kaufman:
Enfim, durante essa aula o cara exibiu uma cena de “A volta do Todo Poderoso”, uma em que o Steve Carell é seguido por pássaros que acabam vandalizando seu escritório. A plateia riu muito durante a projeção e, assim que o trecho acabou, Mckee se virou para o auditório e disse: “agora vou explicar porque essa cena não é engraçada”. Nunca tinha visto tanta gente engolir uma gargalhada ao mesmo tempo.
Comédia é o gênero mais difícil, tanto pelo fato de humor ser algo muito subjetivo — prova disso é o número reduzido de obras desse estilo nas listas de melhores de todos os tempos — quanto pela dificuldade de se manter uma história cativante quando existe a obrigação de plantar gags eficazes pelo caminho. Acho até esquisito que eu tenha feito carreira nessa área, por favor me chamam para escrever drama, sério.
Dito isso, tenho pena de dizer que “Fora de Série” — filme de 2019 que só vi agora — não bateu, até porque é nítido o esforço de todos envolvidos para provocar gostosas gargalhadas. Aqui se usa a premissa de “Superbad” e de várias outras comédias colegiais (jovens querem transar na última festa antes da formatura depois de anos no zero a zero) mas escala duas protagonistas femininas (e feministas) super inteligentes, em vez dos iletrados com mais hormônios do que neurônios de sempre.
Essa configuração incomum talvez tenha deixado as autoras — todas mulheres com excelentes obras no currículo — à vontade para revisitar os clichês do gênero enquanto distribuem várias piscadinhas para o público. E isso é um problema, porque os homens tiveram tanto tempo com o brinquedo só para eles que exauriram todos os recursos, inclusive a autoironia. A gente acaba adivinhando o final de várias piadas, algo que significa o beijo da morte para toda cena com intenções cômicas.
Mas como expliquei antes nessa seção, “não bateu” não significa que achei o filme ruim, só que me passou a impressão de que deixou uma lacuna entre sua execução e seus propósitos. “Fora de série “ me entreteve e talvez até possa te fazer rir como a cena dos pássaros na aula do Mckee. Eu disse que comédia é difícil.
Arnaldo, eu quase nunca te leio tendo visto nada do que você escreve nas duas seções de crítica, e estaria mentindo dizendo que depois procuro saber, mas ante a essa pseudo ofensa aos nossos gostos completamente distintos, eu queria dizer que leio mesmo assim, sem entender nada do que se trata, porque adoro o sarcasmo presente em cada linha.
Eu sou uma que pira demais em estética de socar racista, mas não socaria, pois não consigo passar da ofensa verbal que já prático regularmente