O Declínio do Império Americano
Se você abriu essa newsletter quarta de manhã, assim que ela chegou na sua inbox, ainda deve estar rolando a apuração da eleição norte-americana, evento que a gente acompanha por osmose, já que a nossa imprensa pertence ao fandom dos EUA. Sim, o jornalismo brasileiro é apegado como um ouvinte do Iron Maiden fingindo que os últimos discos causam o mesmo impacto que os primeiros, e fazendo força para ignorar a crítica especializada afirmando que na ordem universal das coisas nem os primeiros eram assim tão relevantes. Enfim, torcendo para a Kamala ou pela terceira via deles, que é a guerra civil.
Mas qualquer que seja o resultado das eleições de papelzinho continuo pedindo pro pessoal assinar a versão paga dessa newsletter (R$ 10 mensal ou 100 anual) pra que eu possa continuar mantendo esse meu cantinho na internet enquanto não vem a ordem de despejo. Afinal, como diz a Folha de S. Paulo, jornalismo de qualidade exige recursos, mas blogueirismo meia boca também — quem trabalha por amor é advogado de reconciliação.
Nesse número falo sobre minha enorme capacidade de separar o artista da obra, elogio “A substância” e entro no já enorme pelotão de fuzilamento do novo Coringa. Também mostro meus cartuns e quem sabe algum naco do meu corpo por preço a combinar.
Separar o artista da obra
Sempre estranho quando o pessoal faz aquela clássica lista de filmes imperdíveis — seja de uma mostra de cinema, de final do ano, de uma década específica — porque eu costumo achar tudo muito perdível. Deve ser porque sou autista nível um segundo minhas pesquisas no google e não consigo deixar de tomar as palavras pelo que elas significam. Se a galera não tá sendo hiperbólica pra fazer charme imagino que deva ser muito difícil acompanhar tanta coisa imperdível.
Penso naquele livro de mesa de centro “1001 filmes para ver antes de morrer” (olha o exagero dramático aí de novo). É uma tarefa e tanto ver 1001 filmes, ainda mais se você levar em conta que a cada dia surgem mais lançamentos que você também vai querer ver — sem contar as séries, os livros, aquela peça de teatro do seu amigo que você nem quer assistir tanto assim mas terá que arrumar tempo e encaixar na agenda. Não me entenda mal, ali tem dicas ótimas, mas por exemplo acho que dá pra passar a vida sem ver (o excelente) “Trens estreitamente vigiados” (Tchecoeslováquia, 1967) e mesmo assim morrer em paz com o seu catálogo do Letterboxd.
É um pouco como o uso indiscriminado da palavra gênio — a gente sabe que ela é um fator distintivo raro mas nos acostumamos gastar como se fosse um recurso inesgotável na natureza.
Fiz essa introdução pra dizer que, por conta desse meu TOC gramatical, consigo separar com facilidade o artista da obra, tarefa que muitos confessam achar impossível. Quando gosto de uma determinada criação a ponto de considerá-la, bem, imperdível, não tenho problema nenhum em descartar um autor caído em desgraça como se ele fosse apenas o casulo de um organismo superior.
Não vou deixar de gostar de um filme, livro ou disco porque o indivíduo que o pariu foi desmascarado como um vilão abjeto, qualquer que tenha sido seu crime hediondo ou vacilação dolosa. Primeiro porque é mais fácil abandonar um autor cancelado do que tirar de dentro de si a influência deixada por uma obra marcante.
Depois porque sempre costumam usar motivos atenuantes bem mais rastaqueras pra defender outros sujeitos pegos em flagrante delito: sempre foi um bom pai, faz caridade, vota na esquerda. O que são essas coisas perto de uma criação que ganha mais significado cada vez que é revisitada?
De qualquer forma só defendo autores em apuros mediante honorários. Eles que lutem.
Arnaldo's crapbook
Meu caderninho de rascunho
Nessa seção falo de um filme (ou série, ou livro etc) que caiu bem e de outro filme (ou série, ou livro etc) que não bateu. Nem sempre vou tratar dos últimos lançamentos, principalmente no caso das coisas de que não gosto — porque o desagrado, assim como o Bolsonaro, precisa ser devidamente processado.
Reconsidere, Bruna
Bateu: “A Substância” (2024)
Um dado mudou completamente minha experiência ao assistir “A Substância”: descobri que Bruna Biancardi, a namorada do Neymar, disse que foi o pior filme que ela viu na vida. A partir dessa informação não consegui acompanhar nenhuma cena sem pensar na reação correspondente da mais nova crítica cinematográfica da praça. “O que a Bruna achou do dedo podre?” “O que ela sentiu na hora do seio suicida?”. Fiquei parecendo o meme do Paulo Gustavo falando “ai tadinha, que barra”. Que no futuro ela seja tão criteriosa escolhendo namorado quanto é resenhando filme.
Pois peço licença para discordar da Bruna: o exercício de estilo da diretora e roteirista Coralie Fargeat é pra mim o filme do ano. E qual foi o enredo que decepcionou a nossa Pauline Kael do submundo influencer? Essa: Demi Moore é Elisabeth Sparkle, uma atriz que envelheceu e está sendo escanteada pelo público que já a amou intensamente. Ela ainda tem uma boa plataforma num programa de ginástica na TV, mas a direção da emissora quer substituí-la.
Enquanto lamenta sua perda de prestígio, Sparkle descobre a existência da substância clandestina do título, que oferece uma espécie de retorno à juventude e é comercializada através de uma caixa postal em um beco. Ela aprende sobre posologia, efeitos colaterais e contraindicações através do manual de instruções na embalagem e por um número de SAC onde é atendida por um interlocutor extremamente lacônico. O que vem depois é difícil de resumir sem entregar alguns pontos de virada do filme — mas quem não gosta de spoilers é melhor se apressar porque os personagens de “A Substância” já foram o maior sucesso das últimas festas de Halloween.
A pressão que a sociedade exerce sobre a autoestima das mulheres poucas vezes foi elaborada com tanta violência e precisão como nesse body horror que deve ter maravilhado o David Cronenberg, se é que Coralie tá interessada na opinião dele. O filme encara o gênero de terror com tom um farsesco assim como o que Kubrick usou em “O Iluminado”, que é explicitamente citado na cenografia e no jogo de câmeras — uma entre várias referências, aliás, de “Crepúsculo dos Deuses” até a seringa com o líquido verde de “Reanimator”.
Sugiro que você veja “A Substância” imediatamente e espero que o algoritmo sugira pra Bruna Biancardi algo que tenha mais a ver com a sensibilidade dela.
Um foda-se sem graça
Não bateu: “Joker: Folie à Deux” (2024)
Tentei ver “Coringa: Delírio a Dois” com a mesma boa vontade do Tarantino, que disse que é o filme do Coringa que o Coringa faria. Bom, aí a gente entende porque o cara é palhaço e bandido mas não cineasta.
Primeiro, a grande queixa do público: é um musical. Sim, filmes baseados no universo dos super-heróis não costumam atrair gente que gosta de personagens que exprimem seus sentimentos cantando em vez de dando porrada uns nos outros. Mas “Delírio a dois” não é beeeeem um musical: suas canções não foram escritas para ser um mecanismo da trama (são standards, e bem batidos) e nem fazem a história andar, porque todas são sobre os mesmos temas de inadequação, obsessão amorosa ou (falta de) felicidade, e é aí que a gente percebe que o filme nem tem uma história direito.
Esse é o problema da Arlequina, personagem da Lady Gaga. Ela não tem outra função além de se apaixonar pelo Coringa e cantar músicas sobre esse amor, ou seja: além de ser unidimensional não passaria no teste de Bechdel.
Na verdade “Delírio a dois” é um filme de tribunal, e um dos piores já feitos, já que o Coringa está na cadeia por ter matado um cara ao vivo na televisão, sempre um caso complicado de defender, e o julgamento — com seus lances surreais como ele demitindo sua advogada ao vivaço pra fazer a própria defesa com maquiagem de palhaço e fumando em lugar fechado — parece se passar em sua cabeça, um recurso narrativo desgastado e que já havia me irritado no primeiro filme.
Dessa vez nem a performance do Joaquin Phoenix salva: ele não canta muito bem e no filme não faz muito mais do que isso, a não ser apanhar dos guardas. Nem a nova transformação física do cara impressiona, pelo contrário, depõe contra: ficou com essa cara de vítima do Ozempic pra fazer isso aí?
Não consigo mesmo achar — como o Tarantino — que o filme foi um grande foda-se do diretor Todd Phillips pros executivos que estão transformando Hollywood em uma linha de montagem de franquias e pro público que está engolindo merda como se fosse maná.
A gente até gosta quando caras que já prestaram grandes serviços ao cinema como o Coppola fazem de propósito um filme impossível de assistir, como parece ser o caso de “Megalopolis” (não vi ainda, se gostar me retrato aqui), mas não sei se eu tô muito a fim de ser benevolente com o “One from the heart” do responsável por “Escola de idiotas” e pela série “Se beber não case”. O cara ainda teria que comer muito feijão antes de ganhar o direito de cuspir no prato.
Queria pedir desculpa desde já pelo cartum datado das eleições nos EUA, acreditei que ia ser apertada e foi esse 7 a 1 que se viu
Como autista nível 1, primeiramente diagnosticada pelo YouTube e agora devidamente avaliada por um médico mais ou menos competente, devo dizer que fiquei bastante contente de ver a "imperdibilidade" das coisas ser questionada. Quase tanto quanto a tua reflexão sobre a expressão "aquariano nato" ser sem sentido porque só se pode ser aquariano por nascimento.
Quanto ao filme "A Substância", o jovem Daniel Duncan escreveu um texto maravilhoso aqui mesmo no substack. Tão maravilhoso que chega a ser estranho.. chega a ser doloroso de tão belo. Como boa parte do que ele faz fora da comédia.
(comentário absolutamente enorme par fins de maximização do engajamento)