Deus me livre ser esse cara
Minha terapeuta já me ouviu falar tanto disso que deve dissociar legal quando volto ao assunto: estou sempre em alerta para não virar aquele proverbial velho alugando o barman na madrugada, reclamando que a vida armou pra mim, que eu estava destinado para grandes coisas mas sabotaram meus planos.
Pra quem tem uma carreira de relativo sucesso essa é uma tentação grande — deveria ser mais fácil pra quem nunca alcançou nada, mas pelo pelo que vi tem gente que não se conforma mesmo assim, e até começa nessa atividade de lamentar sua trajetória na Terra antes mesmo de alcançar a meia idade. Mas como diz o Samuel L. Jackson naquele filme cultuado, I'm tryin' real hard to be the shepherd.
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Nesse número falo de como o mercado financeiro anda sincericida, elogio o documentário da Disney (fazer o que, eles são os donos do catálogo) “Beatles ‘64” e lamento ter que entrar para o clube dos detratores de “Megalópolis”. Além disso: meus cartuns e meu sorriso de criança toda vez que você curte o meu conteúdo :)
O Deus Mercado do Velho Testamento
Depois que o capitalismo cantou vitória com a queda do Muro de Berlim tivemos um hiato da História que poderíamos chamar — baseados no período de abertura política na Checoslováquia de 1968 conhecido como Socialismo de face humana — Capitalismo de face humana. Mas não foi exatamente um capitalismo com preocupações sociais, modestas que fossem, até porque isso seria uma violação de seus princípios básicos.
Era mais um capitalismo disfarçado de humano, assim como no filme “A Substância” uma criatura gosmenta e disforme usa uma máscara de mulher bonita para se apresentar em público. Foi nessa etapa que os ideólogos liberais mais se fingiram de bonzinhos, de interessados na prosperidade geral, de tal maneira que até a esquerda quis surfar a onda e fazer cosplay de tecnocrata, gerando aberrações como o trabalhismo pelego do Tony Blair.
Agora acabou a necessidade do disfarce. O capitalismo fechou o cerco de tal forma e fez a gente tão de refém que não precisa mais se comportar. Agora é a hora de falar coisas que eram impossíveis de enunciar quando o liberalismo era vendido como a doutrina econômica oficial do regime democrata. É a volta do Deus Mercado do Velho Testamento, aquele que impunha 16 horas de jornada, botava crianças na linha de montagem e mutilava operários diariamente — e não tinha pudor de exigir esses sacrifícios como se fossem a única forma de poupar a humanidade de sua ira.
Nas últimas semanas, com a discussão sobre o fim da jornada 6 X 1 e a isenção de imposto para quem ganha até 5.000 reais, esse Deus falou um monte através da boca dos seus profetas. Por exemplo, essa comentarista da globonews:
“Esperamos que o congresso possa limitar gastos com saúde e educação, essa é a nossa esperança”. Os pensamentos intrusivos do capitalismo de repente viraram o discurso oficial.
Confesso que cheguei a achar que essa galera ia hesitar um pouco antes de censurar uma reivindicação e uma medida capazes de produzir tanta unanimidade na opinião pública, mas estava enganado. E estão fazendo isso sem pudor de cair em contradição em relação aos pilares do seu credo — engraçado como liberal sempre diz que imposto é roubo mas na hora de cobrar dos mais pobres eles chamam de austeridade e abrem uma exceção.
A gente se pega pensando se não é melhor assim, com as cartas na mesa, mas não: a preocupação com a aparência é uma concessão mínima à civilidade. A falta desse sinal de hesitação entre intenção e gesto significa que chegou a nossa vez de subir no altar para aplacar a fome da Divindade.
Arnaldo's crapbook
Meu caderninho de rascunho
Nessa seção falo de um filme (ou série, ou livro etc) que caiu bem e de outro filme (ou série, ou livro etc) que não bateu. Nem sempre vou tratar dos últimos lançamentos, principalmente no caso das coisas de que não gosto — porque o desagrado, assim como o Bolsonaro, precisa ser devidamente processado.
À prova de revisionismo histórico
Bateu: “Beatles ‘64” (2024)
O pessoal da rede mundial de computadores gosta de fazer comparações descabidas com uma certa intenção performática escolhendo as unanimidades como alvo, tipo “Molejão melhor que Beatles”. É um pouco como aqueles caras que falam que escolheram determinado time porque todos os outros outros amigos torciam para o Flamengo — amigo você tinha seis anos, por acaso confiscaram seu game boy?

Mas o impacto que os Beatles tiveram no mundo não dá margem para nenhum revisionismo, e o documentário “Beatles ‘64” pode ser apresentado como prova no tribunal da História. É sobre a primeira passagem da banda pelos Estados Unidos, duas semanas que pareceram meses dado o número gigantesco de compromissos que tiveram que cumprir, alguns deles roubadas impensáveis na nossa era onde gestão de marca é tudo.
Baseado principalmente em imagens captadas no olho do furacão da beatlemania pelos geniais Albert e David Maysles (“Grey Gardens”, “Gimme Shelter”), o filme dá a impressão de mostrar registros inéditos, apesar de boa parte do material já ter sido lançado em “What's Happening! The Beatles in the U.S.A.”, assinado pelos próprios irmãos. Sabe-se lá porque outras produções sobre os quatro de Liverpool (inclusive o monumental "Anthology”) beberam com tanta parcimônia nessa fonte.
Os documentaristas tiveram acesso total, e a sensação de intimidade dá até claustrofobia — ficamos tão apertados com John, Paul, George e Ringo em quartos de hotéis, cordões de segurança e vagões de trem que quase sentimos seu tédio durante vários momentos esperando pela próxima apresentação ou ação publicitária.
São dignos de nota os depoimentos colhidos com outros personagens além dos entrevistados de sempre: fãs que tiveram seu momento de glória (e algum embaraço) quando foram flagrados pelas câmeras em total estado de histeria; profissionais que fizeram parte da logística insana de hospedagem e deslocamento dos rapazes; músicos negros variando entre chocados e agradecidos pela luz que os Beatles lançaram sobre suas canções — em regravações ou nas suas emulações reverentes.
Nesse sentido “Beatles ‘64” é um belo exemplo de colonialismo full circle: nessa turnê os ingleses estavam vendendo de novo para a América do Norte a música que tomaram dela para si. E se o rock, que parecia ser um fenômeno passageiro como a brilhantina de Elvis Presley, teve uma sobrevida e uma predominância de muitos anos, dê graças a — ou reclame com — os Beatles.
Tapa de raspão
Não bateu: “Megalopolis” (2024)
“Joker: Folie à Deux” e esse aqui foram vendidos como mais do que filmes: seriam manifestos subversivos contra Hollywood, que virou uma linha de montagem de franquia e remake, assinadas por dois criadores que não estariam nem aí para agradar o público no processo. Bom, um desses criadores é o cara da franquia “Se beber não case” e o outro é o Coppola, que teve a coragem pra torrar 100 milhões de dólares do próprio bolso só pra mandar esse recadinho pros acionistas dos grandes estúdios — uma coragem relativa, se você tem 100 milhões de dólares sobrando pra torrar.
Projetos pessoais de alto orçamento e nenhuma garantia de retorno financeiro não são novidade, só são cada vez mais raros em um cenário onde está difícil lançar até ideias originais baratas e orientadas pelo algoritmo. Mas no caso desses dois talvez fosse melhor guardar a grana para produções em que a gente pelo menos entendesse a mensagem anti-sistema. Já falei do filme do Coringa aqui, agora é a vez de “Megalopolis”.
Francis Ford Coppola não é infalível e tem sua cota de fracassos ambiciosos (bons, como “One from the heart” e ruins, como “Cotton Club”). Mas sua alegoria sobre a decadência dos Estados Unidos como se eles fossem o Império Romano em seus últimos dias, com corridas de biga, leilões de virgens e lutas de gladiadores é uma bagunça não muito gostosinha.
Em “Megalopolis” Adam Driver é Cesar Catalina, um arquiteto que quer reformar a cidade de Nova Roma — Nova York, só que retocada no Midjourney — com uma tecnologia nova que descobriu em suas pesquisas para tentar ressuscitar a esposa (acho que nessa distopia arquitetura e medicina estão na mesma grade curricular), uma espécie de supercondutor usado pra fazer uma daquelas esteiras rolantes de aeroporto no lugar das vias expressas. Ah: Catalina, por motivo nenhum em termos de função no roteiro, tem o poder de parar o tempo.
O prefeito, Giancarlo Esposito, não gosta dele, mas sua filha (Nathalie Emmanuel) gosta 🎵. Só que Shia LaBeouf (Clodio Pulcher) gosta menos ainda, e depois que sua madrasta Aubrey Plaza (Wow Platinum, meu Deus esses nomes) toma um toco de Catalina, se une a ela em um plano para matá-lo, além de roubar o poder e o dinheiro do pai de Clodio, Hamilton Crassus (John Voight), o maior banqueiro da cidade.
Rola ainda uma trama sobre um satélite russo desgovernado, mas o próprio Copolla não sabe o que fazer com ela porque o bicho cai em Nova Roma e mesmo assim não tem nenhuma cena mostrando as consequências. De repente a galera acha que tudo depois do 11 de setembro é anticlímax.
Nada disso forma um filme coerente, embora haja um tom de desordem proposital, afinal estamos testemunhando o fim de um império decadente. Só que as cenas parecem pertencer a filmes diferentes — às vezes estamos numa daquelas comédias proto-hippies dos anos 60 com elenco estelar e que pareciam compilados de esquetes, às vezes numa peça de teatro seríssima atrapalhada pelo overacting do Shia LeBeouf.
Mesma coisa com a parte visual, variando entre cenas deslumbrantes e efeitos de CGI que parecem ser da época em que eles ainda estavam em fase de implementação. O final cafona e esperançoso é especialmente desse jeito, lembrando aquelas imagens de folheto adventista com casais embalando filhotes de tigre, cachoeiras e árvores em abundância que viraram meme. O tapa na cara de Hollywood pegou de raspão.
To com a impressão que estes grandes bastiões da direção roliudiana vêm tentando sem sucesso requentar fórmulas que já deram certo, sem nada muito original em pauta. E sim, uma galera não entende (ou finge não entender ou tá falando merda sempre sobre) o tamanho dos Beatles pra música pop. O mesmo vale pro documentário sobre o George Harrison, que dá pra perceber o tamanho do rolê todo.
Eu tinha até esquecido do satélite russo. Na verdade eu queria mesmo era esquecer o filme todo.