A hora da escopeta
Essa semana o Mark Zuckerberg resolveu escancarar que suas redes sociais são um safe space de nazista e uma zona de free bullying pra quem ousar insinuar que pessoas trans são seres humanos. A gente meio que já sabia disso mas era grato pela gentileza dos moderadores em fingir que não era bem assim. Acabou o amor (na verdade não era amor, era só um pouquinho de boa vontade).
Agora que as cartas estão na mesa todas as pessoas que acham um absurdo que meia dúzia de empresas sejam donas do mundo precisam entender que fazem parte de uma minoria perseguida, como a aliança rebelde de Guerra nas Estrelas. A gente acaba de passar daquela fase nos filmes de zumbi onde queremos acreditar que os contaminados ainda são nossos amigos e parentes. É hora de saquear as lojas de armas atrás de uma escopeta.
E essa foi minha mensagem de ano novo pra vocês. Se quiserem que eu seja mais otimista invistam no meu bom humor assinando essa newsletter por mês (dez reais), por ano (cem) ou contribua com qualquer valor na chave pix arnaldo.branco@gmail.com. Para mim dinheiro não só traz felicidade como leva a felicidade a vários lugares do mundo dependendo de quantas milhas você consegue acumular no Smiles.
Nesse número falo de “Ainda estou aqui” e sua nova rivalidade com “Emilia Pérez”, recomendo “Cem anos de solidão” e fico pistola com a mania da galera de achar que o gosto dos outros é um ataque ao seus próprios valores (não é o nome de um filme, vai lá pra entender). E mais: cartuns. Vamos nessa.
Traidor da pátria
Quando os diretores Fernando Meirelles e Katia Lund lançaram “Cidade de Deus” foram criticados pelo rapper MV Bill, que convocou uma entrevista coletiva para afirmar que o filme explorava a imagem das crianças da comunidade e só mostrava o lado negativo da favela. Na sequência, ele anunciou a exibição de seu documentário “Falcão: meninos do tráfico”. Sim, eu também fiquei confuso como você ficou agora.
Desde sempre cineastas brancos com grana são repreendidos quando voltam suas câmeras para os dramas dos desvalidos, acusados de abusar de dores alheias — que de fato são mais interessantes, cinematograficamente falando. A luta pela sobrevivência na periferia fica melhor na tela do que, digamos, os problemas de quem sofreu bullying na hora do recreio no Colégio Santo Agostinho.
Mas no caso de “Ainda estou aqui” restrições surgiram apesar do fato de Walter Salles ter filmado a história real de uma tragédia que se abateu sobre uma família rica — portanto dentro dos limites do seu lugar de fala. Como escrevi aqui, alguns espectadores censuraram o diretor por ignorar as tribulações de quem ficou com a pior parte da herança maldita dos anos de chumbo: negros e pobres.
(Se você é bem nascido é melhor se preparar pra aguentar uma galera te olhando de lado toda vez que fizer uma première — o que, convenhamos, é bem menos deprimente do que nunca conseguir dinheiro para bancar seus projetos.)
Só que é bem difícil argumentar com o sucesso, e depois que os autores rebateram as críticas com algumas ressalvas bem óbvias — o filme é baseado em uma autobiografia; existem outras obras que cobrem as, como direi, lacunas de “Ainda estou aqui” — a produção de Salles cumpriu uma trajetória de aclamação até a noite da cerimônia de entrega do Globo de Ouro. E aí foi a vez de outro filme ter sua legitimidade questionada: “Emilia Pérez”, que teve a ousadia de tomar o prêmio do representante brasileiro.
Segundo internautas revoltados “Emilia” não merecia o Globo de Ouro por ser a obra de um diretor francês cis contando a história de uma mulher trans passada no México dos cartéis da droga — com apenas uma atriz mexicana no grupo de protagonistas. Concordo que é muito material para problematização nesses tempos onde há um enorme clamor por autenticidade, mas fico pensando afinal como se obtém autorização pra ser ficcionista nos dias de hoje.
Não estou chorando nem pelo Salles e nem pelo Jacques Audiard — os dois vão continuar filmando sem enfrentar os perrengues da galera que nunca foi cotada para ganhar prêmios internacionais — mas sempre vou defender que filmes devem ser julgados mais pelo resultado final e menos pelo que sabemos a respeito dos seus criadores ou dos meandros de sua produção.
Se não a galera pode ficar como eu, que assisti Emilia Pérez só por causa do trailer, gostei e agora tô me sentindo um traidor da pátria.
Arnaldo's crapbook
Meu caderninho de rascunho
Nessa seção falo de um filme (ou série, ou livro etc) que caiu bem e de outro filme (ou série, ou livro etc) que não bateu. Nem sempre vou tratar dos últimos lançamentos, principalmente no caso das coisas de que não gosto — porque o desagrado, assim como o Bolsonaro, precisa ser devidamente processado.
Perdão para os assassinos
Bateu: “Cem anos de solidão” (2024)
Quando a Globo mostrou interesse em adaptar “O sorriso do Lagarto” para uma minissérie João Ubaldo Ribeiro se aconselhou com Jorge Amado, que recomendou pegar o dinheiro e não assistir. Ubaldo acatou a sugestão, até porque ficou revoltado quando soube que os roteiristas resolveram mexer na trama para assassinar um personagem que era baseado em uma prima querida. Mas ele mudou de ideia porque o Tom Jobim contou que estava trocando o horário dos seus shows para não perder nenhum capítulo — e acabou conferindo e gostando. Imagina ter conselheiros desse quilate.
A transposição de uma obra para outro formato não provoca danos ao original, além de tratar-se de um animal de uma espécie completamente diferente; portanto é possível (e recomendável) evitar comparações — o problema é convencer a maioria do público. Clássicos da literatura sempre tiveram fama de gerar abacaxis audiovisuais, com raras exceções — tanto porque é uma tarefa difícil mesmo como por conta da percepção prévia de que é melhor nem tentar.
Se dar ao trabalho de transformar em som e imagens aquilo que milhões de leitores já construíram em suas cabeças a partir de uma escrita envolvente geralmente é enfrentar uma luta inglória, e no caso de “Cem anos de solidão” existe o fato agravante do autor Gabriel García Márquez ter se manifestado em vida contra essa empreitada. Quando a Netflix anunciou a série baseada no livro deu pra ouvir o gemido de desaprovação em uníssono dos amantes da saga dos Buendía.
Dei play no bagulho um pouco com esse espírito, imaginando que ia largar no meio do segundo episódio só para ter uma opinião mais ou menos embasada quando fosse lamentar com o meus amigos sobre a escassez de roteiros originais nas produções de hoje. A aparência de produção para a TV — no sentido em que percebemos certas escolhas de enquadramento, iluminação e filtros — parecia confirmar minha impressão.
Mas aos poucos fui fisgado pelas atuações, pelo ritmo e, de novo, pela história. Ajudou também o fato de ter lido “Cem anos” há muito tempo e precisar de pelo menos uma boa recapitulação para lembrar a função de todos aqueles personagens com nomes iguais. Mas está tudo lá, e a tal cara de minissérie global (me lembrei principalmente de “O tempo e o vento”) acabou ajudando a estabelecer o tom onírico que a gente relaciona ao tal do realismo fantástico.
Recomendo que você experimente também, se até o João Ubaldo conseguiu perdoar os caras que mataram sua prima.
Nem tudo (geralmente nada) é sobre a gente
Não bateu: a mania da galera de achar que o gosto dos outros é um ataque ao seus próprios valores (exibição permanente)
Estava posto em sossego nas internets quando me deparei com esse print do Letterboxd:
Montar uma lista de recomendação dá trabalho e tenho certeza que não compensa o número de pessoas que efetivamente decidem conferir as sugestões, por isso fico meio abismado com as que se prestam a alertar desavisados sobre filmes para evitar. Mas essa aí parte de tantas presunções que me deu vontade de escrever a respeito — nada contra a autora especificamente, é uma mania comum nas redes sociais.
“Filmes que os homens pensam que são inovadores (não são) porque afinal são homens”. Primeiro: pode ser que existam homens que acreditem que “História de um casamento” (2019) inaugurou o gênero DR nas telas ou que “Cães de aluguel” (1992) foi pioneiro em embaralhar a ordem cronológica de suas cenas, mas custo a crer que são a mesma pessoa, e aposto que a ocorrência de tal ser pensante é residual. Mesmo o espectador mais alienado e preguiçoso sabe que existe uma produção cinematográfica anterior a essas obras e que sua reverberação tem mais a ver com a compatibilidade com suas preferências cinematográficas do que com seu lugar na História.
Sobre a afirmação de que esses filmes não são inovadores: vamos ignorar o fato de que provavelmente nenhum foi produzido com essa intenção, mas o fato é que cada um é único no uso e elaboração de suas referências, e se não ganharam Oscar de originalidade talvez mereçam o impacto que causaram na época do lançamento — ou pelo menos a sobrevida de suas reputações.
E sobre a questão do machismo me parece que essa lista é eclética demais pra denúncia fazer sentido. A impressão que tenho é que ela é uma indireta para alguém muito específico que a autora acredita representar um movimento cultural em ascensão.
E esse é o problema: estamos tão investidos na construção dos nossos personagens online que confundimos características da nossa personalidade com a nossa personalidade em si. Por isso uma simples divergência de gosto parece um atentado ao nosso credo. Não é possível que um determinado filme do meu desagrado seja cultuado por tanta gente — a não ser que haja uma conspiração ou outro fator externo conduzindo essas escolhas, nesse caso (pelo que entendi) a masculinidade tóxica.
Às vezes um filme é só um filme. E eu sinceramente gostaria de encontrar alguém que acredite que “Buffalo 66” marcou a história do cinema além do Vincent Gallo.
concordo sobre walter salles, mas a cada obra lançada ainda preciso tecer comentários sobre o fato da família dele ser dona do itaú. pago muitos juros ao itaú.
Adorei a edição, Arnaldo.
Cem anos de solidão ficou lindo! Muito bem adaptado! E fico impressionada com o povo reclamando, detestando. Acho que tem uma quê de se destacar na multidão. Ou só uns chatos, vai saber.